A louca sou eu
sexta-feira, 28 de julho de 2017
conjecturas de uma manhã fria na casa amarela
a coisa mais certa que a gente pode fazer por nós mesmas é ouvir essa voz, esse mistério interior que nos habita: alma, subjetividade, intuição, ar.
e é também a coisa mais custosa desse mundo.
porque tudo, mas tudo mesmo, nos obriga a esquecer dessa fonte, que nunca se esgota.
esse mundo quer acabar com a gente. nós, as bruxas, nós, as mulheres.
nós, corpos mutantes.
esse mundo que está aí não é feito pra funcionar. não do jeito que desejamos.
não do modo que acreditamos.
muito distante desse mundo duro, cartesiano e sintético.
do "perde e ganha" e da trapaça.
de tantos nós que nos amarram. ou acham que. (somos líquidas.)
desfazer esse tanto de emaranhado é tarefa que exige paciência de uma penélope às avessas.
nós, as desatadoras de nós. (como eu admiro essa santa.)
a santa e ou/louca que somos sempre, pra dar conta da vida.
recomeço o dia sem saber de quase nada.
a não ser que: preciso sair pra lutar.
não farei isso sozinha.
tudo passa pelo corpo.
as palavras tem poder.
sábado, 9 de janeiro de 2016
De novo mar
[Esse texto pode ser lido separado (creio que tem sentido , mas não tenho certeza...) ou em continuidade dos seguintes: Noventa dias de tormenta, Em terra, uma história, Um homem bom e Dos sonhos]
Eu só queria ver o mar. Pediu muito devagar a mulher, com os
olhos de sonho. Agora. Sim. Vamos então.
Saíram pela porta lateral, passando por um caminho de pedras
bem assentadas e cercado de verdes. Era uma estradinha que logo deu na areia
fina. No fim de uma pequena subida avistou as primeiras vagas. Foi como se uma
dor a invadisse. Soltou um longo ah...e logo reagiu tapando a boca, como se
tivesse medo de tudo recomeçar. Tonteou. Calma. Em casa de enforcado não se
fala em corda. A mulher conseguiu rir baixo e depois desatou em choro livre. A
outra a amparava, passando a mão nos seus cabelos. Vamos sente-se aqui.
Eu só queria entender porque me deixei levar tanto tempo, sabe?
O naufrágio era certo, como certos são: essa areia, céu, sol, eu e você. Eu sabia que
não devia, mas me deixei levar e levar e levar. Não se culpe. Foi o melhor
naquele momento. Não tenho tanta certeza. Agora não importa mais. O que você
viveu ninguém pode mudar. Não sabia que podia ser tão doloroso. O quê. O amor. O
amar. Amar. O mar.
Você não consegue falar das coisas de maneira comum. Sempre metafórica.
Sim é cansativo, vício de profissão. O que você fazia. Eu era atriz. No teatro.
E ficou surpresa e alegre em lembrar. Entendo melhor agora. Entende o quê. Você
está vivendo um papel. Antes fosse. Eu estava brincando. Não deixa de ter sua
razão. Eu inventei uma história de amor, parte por parte, cena por cena e
depois a interpretei. Mas o roteiro se rebelou, criou outras páginas e personagens
não previstos. O que era doçura virou ironia. O que era bonito endureceu. E
a cena se desmanchou em atuações melodramáticas. E depois trágicas. As luzes se
apagaram. Os espectadores se decepcionaram. O espetáculo ficou sem final. Acabou de
repente, como começou. Admiro sua
imaginação. Não admire. Ela só me fez sofrer ainda mais fundo. Sim, mas só ela
pode te curar. A mulher admirou a argúcia de Páscoa. Elas conviviam há tão
pouco tempo e a outra já a conhecia como pouca gente. Essa mulher deve ter
passado por coisas que nem tenho ideia. E com carinho buscou os olhos da outra,
escuros e brilhantes. Ela aquiesceu, tinha uma paz de quem superou o sofrer, era
mais experiente e mais sábia.
Ficaram quietas por um quarto de hora. O vento era forte e
inflava os vestidos estampados das mulheres. Você precisa descobrir como chegou
aqui. Eu não sei. Minha última imagem real é a de um quarto num apartamento, uma
briga, as escadas, um carro, o caminho para minha casa e. Branco, branco, branco. Depois
mar, mar, mar.
E o nome. Não me lembro. E como quer ser chamada. Bárbara.
Gosto desse nome. Eu também. Quer voltar. Deixe-me olhar com calma para ele.
Olhe o quanto quiser. Vou fumar um cigarro. Ah, eu gosto de cigarros. Sim. Quer
um. Fumamos juntas. Pode ser. Umas baforadas e já me sentirei uma mulher nova.
Riram-se.
domingo, 16 de agosto de 2015
De pássaros e gatos
A minha história com gatos
começou bem cedo, nas férias encantadas da casa da minha avó, em Conquista, Triângulo Mineiro, com gatos branquinhos e angorás. Bichanos, chaninhos.
Depois eu, menina de apartamento,
quase não pude tê-los. A não ser um, que pulou da mangueira da casa vizinha
para nossa área de serviço, e que eu carreguei no colo por uns dias, até que
fugisse de novo. A minha tendência aos problemas respiratórios, desde muito
novinha, tornava proibitiva a convivência. Mesmo assim segui adorando gatos.
Já casada, morando em uma casa
grande tivemos alguns, mas não eram criados dentro. De uma hora para outra, essas pessoas que odeiam animais jogavam “bola” pra eles, suspeitávamos da
vizinha. Sumiam.
Lembro-me também de uma gata que
pariu em casa um gatinho cego. Cuidei dele com mamadeira, mas um dia
amanheceu esticado. Uma outra ainda me doeu mais. Chamava-se Mia, presente de
um amigo do teatro. Era alaranjada e seus olhos enormes e doces. Sumiu por uns
dias e comecei a ficar preocupada. Perguntei aos meus onde será que ela estava
e então não puderam mais esconder. Foi a filha que contou: encontraram a gata
morta e enterraram no fundo do quintal, naquele dia mesmo do churrasco de
família, reuniões que aconteciam em muitos domingos na casa antiga. Eu nem
percebi nada, ficaram com dó de me contar. Eu chorei, sou chorona e gostava
dela.
Na casa amarela tive gatos que
perambulavam durante a obra e que até hoje vêm aqui. E a chegada de Riva, de
quem já contei. É uma companhia para a solidão. Esses dias foi castrado e
provocou uma crise em mim. Tenho esse direito? Ainda tive a ninhada de gatinhos
deixados igualmente no quintal, quatro. Deram trabalho, mas acharam donos que
até hoje me agradecem. E Branquinha que foi deixada nos fundos da casa, com olhos
assustados e muita fome. Um amigo ficou com ela, acho que mais pra me ajudar.
Ganhou um colar de strass e lugar macio pra dormir. Tenho notícias de que é
muita arisca e quebra coisas à noite. Gatos.
De pássaros presos nunca gostei,
mas o primeiro foi um canarinho. Uma amiga não tinha com quem deixar quando
viajou e ele ficou na minha casa. Juquinha. Aprendei a cuidar dele. Cantava
muito à tardinha. Bichos são bons para quem gosta de falar sozinha como eu.
Rendem boas conversas. Quando me casei ele ficou em casa da minha mãe. Morreu
de velhice? Acho que sim.
Quando morei num apartamento, ao chegar
do Acre, onde trabalhei, encontrei um ninho de sabiá na janela do banheiro.
Foram dias de estranha e curiosa convivência. Eram três filhotes e a mãe. Eles cresceram
ali, colados ao vidro opaco e me alentaram naqueles dias sombrios. Com metáforas,
por favor. Uma manhã já não estavam.
Um dia nessa casa de teto alto
entrou um passarim, bem pequeno. Fiz de tudo para que saísse, mas ele não
conseguia. Ficou, passou a noite, dando pequenos saltinhos sobre a cama onde
estava e depois dormiu em cima de um quadro. Quando abri a porta do quarto de
manhã, ele estava lá, piando baixinho. Ficou
voando pela casa até que arranjei um jeito arriscado para que saísse. Fechei
tudo e deixei apenas uma fresta na janela de guilhotina. Então fui soltando
lentamente, até que ele entendeu e voou.
Ontem estava trabalhando quando ouvi
sons que misturavam miados e pios. Custei a entender que Riva tinha caçado um
pássaro, que lutava para se soltar, na cozinha. Foi um desespero. Corri em direção a eles, toquei pra fora. Queria
que ele soltasse o pássaro, mas não sabia se já estava muito machucado, se adiantaria alguma coisa. Então queria que ele saísse e
terminasse aquilo longe de mim. Ele fugiu para o meu quarto, debaixo da cama. Fiquei
mais nervosa. Gritei. Até que o pássaro se soltou. E estava vivo. Instantes de alegria e alívio. Toquei Riva
do quarto, maldizendo seus instintos. Tranquei a porta. Respirando pensei um pouco no que fazer. Voltei lá e vi que
ele parecia bem, mas estava mancando um pouco e tinha perdido todas as penas do
rabo. Não conseguiria voar. Precisava de um tempo. Fui à loja de bichos e
comprei uma gaiola e alpiste. Pedi ajuda a um amigo, o mesmo que levou Branquinha. Colocamos o pássaro dentro da gaiola. Era um pardal? Ele ficou
quieto, muito quieto. Pendurei a gaiola na tesoura do telhado. Então saí para
trabalhar. Riva só me olhando, sabendo que desaprovara aquilo.
Fui com a sensação de que o
pássaro não sobreviveria. Ao voltar, à noite, observei que ele estava na mesma
posição. Aperto no peito. Mais um que vinha se somar aos outros que me
assaltam. Sempre à noite. Evitei pensar. Amanhã, amanhã eu resolvo isso.
Logo cedo já sabia que tinha
morrido. Procurei minha enxada, abri uma pequena cova. Perto de uma roseira.
Abri a gaiola, nas mãos um pedaço de pano velho, resto de um pijama. Aquele
serzinho, tão leve. Por isso voam. Ajeitei o pano, enrolei, tampando o bico longo. Pardais
tem bicos assim? Acariciei-o um pouco e rezei, antes de deixar o corpo no fundo
da covinha. Era a primeira vez que enterrava um passarinho. Puxei a terra com
as mãos, pouca. Depois por cima coloquei uns tijolos. Da porta da sala Riva
olhava, sem ter coragem de se aproximar.
Pássaros e gatos. De tudo fiquei pensando: na natureza dos
bichos. Na nossa natureza.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Dos sonhos
Logo depois de admitir que não se
lembrava de seu nome, a mulher entrou em estado de silêncio. Não conseguiu
dizer palavra. Mesmo o café com pão e manteiga, tão saboroso e nostálgico,
arrancou dela qualquer som.
Recolhida ao quarto estava agora.
Os olhos vazios, nem chorar mais conseguia. O rio de seus olhos secara. Sabia
que precisava de um novo plano. “Preciso comer, preciso remar, preciso dormir,
preciso chegar, preciso viver...” Assim atravessou a tormenta. Agora eram
outras as necessidades. Estava sentada numa cadeira confortável que ficava
perto da janela do quarto. Só então reparou que era uma suíte. Aquela porta à
esquerda devia ser o banheiro. Caminhou até ele, abriu a porta e se deslumbrou
com uma pequena banheira. Acreditou que um banho poderia fazer bem. Há quanto
tempo não tomava um? Ela que gostava de chorar debaixo do chuveiro, deixando as
lágrimas se misturarem ao jato morno. Ela que cantava de alegria ou de
tristeza. Ela que... Despiu-se e viu seu corpo no espelho. Estava magro, os
seios mais murchos, os pelos crescidos. Temperou a água e deixou que
escorresse, enchendo a banheira. Entrou e deitou-se, molhando também os
cabelos. Fechou os olhos, a sensação de água limpa e quente derreteu sua
dureza, soltou pequenos ais. Queria ficar ali dias e dias, queria se liquefazer
e depois ir pelo ralo, queria sumir. Só isso. Chega. Para. Reage. (Sempre
aquela outra, do lado de lá, dando ordens, empurrando-a pra frente). Fez espuma
com um sabão de ervas, esfregou-se, com vigor. Tirar a pele morta. Depois
enxaguou-se usando a ducha. Puxou a toalha que estava na parede. Enrolou-se e
saiu. O espelho agora embaçado não registrou a nova mulher. Mais
leve, recendendo a sabonete. Fez um turbante com a toalha menor, adorava
turbantes. E acreditava no poder deles. Foi enxugar-se no quarto. Queria agora
era ter um vestido limpo e novo para usar. Em cima da cama ele estava. Era azul-esverdeado
com ramagens rosadas na barra. Decotado como gostava. Do lado, roupas de baixo
brancas, calcinhas e um sutiã. Tudo ali parecia tão improvável, a mulher nem
questionou. Como uma menina obediente trocou-se. A roupa ficou um pouco larga,
mas agradou-lhe as cores e a textura, crepe. Voltou ao banheiro, penteou os
cabelos que davam pelos ombros. Alegrou-se com o que viu. Quem ela era? Marina.
Ana. Bárbara. Clarice. Selma. Inês. Beatriz. Nina. Maria. Preciso entender,
preciso lembrar, preciso voltar, preciso recomeçar. Preciso lembrar, preciso
recomeçar, preciso lembrar. Preciso voltar, preciso recomeçar, preciso entender.
Sabia já do que precisava. Decidida a sair e investigar quem era, assustou-se com
uma batida na porta. Quem é. Você não me conhece. Você não me conhece. Então
empatamos. Riram-se as duas. E abriu-se a porta.
A mulher era negra, muito alta e
tinha um sorriso franco no rosto. Abraçou-a com força. O vestido caiu bem,
ficou bonita. Obrigada. Como você sabia o tamanho. Vi você no café da manhã. Ah. Trabalho aqui há muito anos. O que faz. Massagens terapêuticas, aromaterapia,
reiki. Como se chama. Páscoa. O nome ressoou. Páscoa. Era um nome pouco comum.
Mas a si era comum. Páscoa. Belo nome. Sim gosto muito dele. Venha comigo. Vou
te oferecer meus serviços. Agora. Sim.
Ia saindo descalça, mas do lado
da cama havia umas sandálias rasteiras de couro. Calçou-as, ficaram exatas. Apenas sorriu pra mulher. Meus pés são
grandes. Os meus também. E riram de novo. Há quanto tempo não se ria. Nem sabia
mais.
Atravessaram o mesmo salão de
cedo e saíram pelos jardins. A direita uma sala grande, toda de vidros e
cortinas. A mulher abriu a porta convidou-a a entrar. O lugar cheirava a
incenso e tinha luzes artificiais. Uma música suave e repetitiva ao fundo. Deite-se
aqui. A mulher obedeceu. Então Páscoa começou a aplicar-lhe a impostura das
mãos, nos chacras. Sentia o calor de cada parte, todo o seu corpo em paz. Quase
adormeceu, mantendo um estado de transe e relaxamento. Depois ouviu o pedido,
dito em voz baixa e pausada: Agora quero que me conte seus sonhos.
A chave. A porta da memória se
abriu. Ela desatou a fala, mas era calma e profunda.
“Quando ele foi embora chorei
muitas noites. Minha cama virou um barco/mar. Naufraguei. Lutei para não
sucumbir. Não sonhava nada. Dias de olhos abertos. Medo de afogar. Medo de
saber. Quando comecei a sonhar parecia real. Era como as mil e uma noites, um sonho
dentro do outro.
Nas primeiras noites sonhei que
nosso amor era uma árvore. Sozinha não podia mais regar aquele arbusto. E então
esquentei óleo de cozinha e joguei nas suas raízes para que secasse. Ela
permanecia firme e não vergava. No dia seguinte estava com uma flor para mim. E
o ritual se repetia, tantas vezes, tantas noites. Queria que aquilo acabasse. Numa
manhã, achei um rastro. Era seiva, tinha escorrido para longe.
Nas segundas noites sonhei que
nosso amor era um gato. Sozinha não podia mais alimentar aquele bicho. E então
comprei veneno de ratos e coloquei na sua comida para que morresse. Ele comia
tudo, devolvia, mas sobrevivia. No dia
seguinte estava com um ronronar para mim. E o ritual se repetia, outras vezes,
outras noites. Tudo parecia insano. Numa manhã, achei uma escama. Era peixe,
tinha nadado para longe.”
Nas terceiras noites sonhei que
nosso amor era uma criança de colo. Sozinha não podia mais criar aquele bebê. E
então cravei minhas unhas em seu pescoço, para que não vivesse. Ele me olhava sem entender,
mas não chorava. No dia seguinte estava com um sorriso para mim. E o ritual se
repetia, noites sem fim. Era triste matar o amor. Numa manhã achei uma pena. Era
pássaro, tinha voado para longe.
Três vezes matado, três vezes
morrido, três vezes acabado.”
Assim terminou a mulher. E abriu os olhos
saindo do estado de sono.
.
sábado, 25 de julho de 2015
Um homem bom
( Esse texto pode ser lido separadamente ou em sequência de dois outros: Noventa dias de tormenta - 19/10/2014 e Em terra, uma história - 23/11/2014)
Aproximando-se das luzes, a primeira casa que viu era azul. Com muitas janelas e uma porta grande. Na lateral tinha uma varanda e, numa rede, alguém fumava. Caminhou com firmeza naquela direção. Abriu uma portinhola de madeira, numa cerca baixa que circundava a área, tudo muito caprichado. Parecia uma pousada. Era.
O homem se assustou com seu
vulto. Levantou-se da rede, jogando na areia o resto de cigarro, uma cigarrilha
de aroma adocicado, que lembrava canela. O que é isso minha senhora. Vai entrando assim sem nem bater. Desculpa eu não
queria incomodar é que. Quem é a senhora. Eu sobrevivi a um naufrágio, naveguei sem rumo durante não sei quantos dias. Meu deus. Eu preciso de.
A mulher desfaleceu antes de
terminar a frase. A emoção de falar com uma pessoa depois de tanto tempo, a
fome, a sede, a exaustão, foram razões mais do que suficientes, para que viesse
ao chão com todo o seu pouco peso. Emagrecera mais de 10 quilos.
Acordou numa cama patente,
parecida com a que herdara da sua avó, quando solteira e que depois ficou para
o filho mais velho. Filho, cama, avó, casa. Novas imagens vieram. Os lençóis
tinham uma estampa de flores rosadas. Por cima uma coberta tecida com fios
coloridos, dessas que as pessoas vendem no litoral. Dois travesseiros apoiavam
seu tronco. Era bom e macio. Um pequeno abajur laranja deixava o quarto pequeno
cheio de luz delicada. Do lado da cama um pequeno caixote antigo. Uma moringa,
um copo. Virou e serviu-se de água. Tomou com sofreguidão, dois copos. No mar a água que recolhia era suja e
salobra. Água de chuva, misturada com a maresia, bebida em pequenos goles. Tudo
era feito com parcimônia. Não sabia se sobreviveria, mas sua dureza de cabra
ensinou-lhe a viver aquela adversidade com economia.
Não tinha ideia da hora. Pelo
friozinho e silêncio devia ser madrugada alta. Olhou suas mãos, seu corpo.
Estava limpo. Mas não se lembrava de ter tomado banho. Lembrava-se de ter visto
a casa, entrado no terreno e então tudo escureceu. Fechados os olhos, na pele
sentia uma tolha molhada e morna, como se dela fora o corpo de Diadorim morto,
sendo limpo pela mulher do Hermógenes. Sim, alguém limpara seu corpo magro e
sujo antes de meter-lhe em lençóis alvos. Vestia uma camisola de algodão longa.
Sem roupas de baixo. Estremeceu levemente ao pensar que pudesse ser o homem.
Ele tinha um leve sotaque, era um estrangeiro. As cãs embranquecidas, o cabelo
farto e ainda escuro. Tinha um rosto duro e uma voz que ficava no ar. Então ela
lembrou-se de. Fechou os olhos com força para não ver aquela imagem. Funcionou. Eu
vou dormir um pouco mais, pensou. Virou-se para o lado esquerdo e cobriu-se até
a cabeça. Pegou no sono novamente. Os sonhos vieram. Ela peixe, dentro de um
rio esverdeado, os cabelos longos e louros, como Ofélia. Mas não estava morta,
nadava entre outros seres e flores, ramagens. Corpo deslizante na água doce,
depois de tanto sal.
Acordou com sons cotidianos. A
cozinha ficava perto, ouviu vozes de mulheres, barulhos de louça, talheres.
Cheiro de café. Café. Café. Seu cheiro sedutor ergueu o corpo da mulher, que
num átimo já estava abrindo a porta, passando por um pequeno corredor e
chegando ao salão. Alguns hóspedes estavam por ali. Olharam-na com olhos
curiosos. A mulher náufraga. A louca do mar. A sereia cansada, diziam baixo.
Nem deu ouvidos. Continuou caminhando, descalça. O aroma inconfundível e a promessa
de comida foram conduzindo aquela mulher de olhos vagos, cor de mel, os cabelos
presos numa fita encarnada, para a varanda que ficava nos fundos da casa,
cercada de verdes, o terreiro banhado de sol. Sentou-se à mesa pequena, de duas cadeiras.
Era o lugar mais afastado, num canto. Qualquer esforço, depois de tanto tempo
em privação, parecia enorme. Ficou
respirando, cobriu o rosto com as mãos, hábito antigo. Por alguns
minutos permaneceu quieta, juntando forças. Quando saiu daquela suspensão, deu
com os olhos dele olhando pra ela. Era fundo aquele olhar. Mas tinha uma
suavidade, uma vontade de compreender. Mesmo assim ela, bicho assustado, fez um
movimento pra se levantar. Ele segurou seu braço com firmeza. Fica. Você
precisa comer um pouco. Ela aceitou a quase ordem dele, a voz era macia. Voz de homem bom, pensou. Vou pedir pra prepararem um mingau para você. Eu
quero café e pão com manteiga. Ele riu. Está bem. Foi buscar.
Ele preparou o pão de sal, serviu
o café numa caneca de louça e trouxe. Pronto, aqui está seu desejo. Ela
sorriu e começou a comer, meio sem jeito,
os farelos caindo no colo. Depois tomou um grande gole do café sem açúcar, forte. Os olhos
grudados naquele pequeno banquete. Não sei ainda seu nome. Ela fez uma pausa
longa. Nem eu, respondeu. E veio um silêncio.
domingo, 31 de maio de 2015
Dia de.
Fazer o domingo de novo é arrancar a pele pra que a carne viva.
Cavucar a terra até que a mãe sangre.
Bater no peito pra lembrar da dor.
Espatifar os vidros das garrafas solitárias, no fundo da casa.
Deixar o choro de misturar ao solo, regar o mato. Esse que cresce. Sempre.
Beber a água suja da bacia-mar.
Com paciência fazer o barquinho de papel, como se fosse brincar.
É se ver no espelho ainda forte.
Preparar a broa e esperar seu perfume.
Incensar a casa cantando.
Cuidar das roupas e das pequenas lembranças para que nada falte.
E virar a Dona Doida. A que mistura Tristeza com Alegria.
E lembrar da doce Cora e suas roseiras.
E chamar Clarice puxando o traço do delineador.
Trazer Frida para a mesa do I Ching.
Lembrar das mulheres da minha ancestralidade.
Evocar minha doce avó Páscoa. Esperar meu duplo: a mulher xamã. Receber a garota de cabelos curtos, suave. E a moça das tatuagens que me enigmam. Companheiras.
De extremos faço meu domingo.
De delicadezas e pequenas violências.
De ar e fogo. Quente e frio. Coturnos e pés descalços.
Que seja mais um dia do resto de nossas vidas, ainda que a vida não tenha necessariamente um resto.
domingo, 10 de maio de 2015
Das mães
Hoje eu falo das
mães. Da mãe do Francisco, da mãe do Lucas, da mãe da Joana, da mãe da
Consuelo, da mãe da Carmen, da mãe da Sílvia, da mãe do Paulo, da mãe do Tomaz,
da mãe do Gustavo, da mãe do Rafael, da mãe da Izabel, da mãe da Thaís, da mãe
da Natália, da mãe da Fernanda, da mãe do Léo, da mãe do João, da mãe do
Arthur, da mãe da Cely, da mãe da Maria Luiza, da mãe da Luna. De todas.
Das mães que
amamentam, das que criam seus filhos sozinhas, das que tem ao seu lado um
pai, das que os amam, das que os
rejeitam, das que batem nos filhos, das que os protegem. De todas.
Falo das mães
que planejaram ter seus filhos, das que fizeram inseminação artificial, das que
os tiveram por descuido, das que os tiveram por tesão, das que os tiveram por
amor, das que os adotaram, das que os abortaram. De todas.
Das que fizeram
das tripas coração, das que tiveram seus peitos inflamados, das que fizeram
cesárea, das que pariram de cócoras, das que morreram de parto. De todas.
Falo das que
criam seus filhos entre lençóis de linho e babás, das que os criam nos trapos,
ao léu, das que deram a eles leite nan,
das que fizeram papinhas, das que compraram os
potes na farmácia. De todas.
Das que lavaram
as fraldas de pano, das que procuraram as descartáveis mais baratas, das que
usam só o modelo mais avançado. De todas.
Das que os
levaram ao médico de madrugada, das que perderam noites de sono, das que
tiveram medo de perdê-los, das que os perderam. De todas.
Das
desnaturadas, das dedicadas, das cansadas, das displicentes, das castradoras,
das compreensivas, das enlouquecidas, das amorosas, das adolescentes, das
temporãs, das insones, das insanas, das matronas, das edipianas, das novatas,
das experientes.
Todas as mães do
mundo merecem ser felizes. Todas.
Que sua função
não seja considerada natural, mas uma escolha, uma conquista, uma benção.
Que ser mãe seja
um direito e não uma imposição da sociedade, que seja um exercício pleno e
feliz: compartilhar a vida, o peito, o afago, a convivência.
É isso que
desejo a todos nós. Alegria mesmo na adversidade.
Feliz todo dia
das mães.
ps: esse texto foi postado anteriormente no blog "Solteiras e descoladas".Peço licença...
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