sexta-feira, 28 de julho de 2017

conjecturas de uma manhã fria na casa amarela



a coisa mais certa que a gente pode fazer por nós mesmas é ouvir essa voz, esse mistério interior que nos habita: alma, subjetividade, intuição, ar.

e é também a coisa mais custosa desse mundo.

porque tudo, mas tudo mesmo, nos obriga a esquecer dessa fonte, que nunca se esgota.

esse mundo quer acabar com a gente. nós, as bruxas, nós, as mulheres.

nós, corpos mutantes.

esse mundo que está aí não é feito pra funcionar. não do jeito que desejamos.

não do modo que acreditamos.

muito distante desse mundo duro, cartesiano e sintético.

do "perde e ganha" e da trapaça.

de tantos nós que nos amarram. ou acham que. (somos líquidas.)

desfazer esse tanto de emaranhado é tarefa que exige paciência de uma penélope às avessas.

nós, as desatadoras de nós. (como eu admiro essa santa.)

a santa e ou/louca que somos sempre, pra dar conta da vida.

recomeço o dia sem saber de quase nada.

a não ser que: preciso sair pra lutar.
                       não farei isso sozinha.
                       tudo passa pelo corpo.
                       as palavras tem poder.
                    

sábado, 9 de janeiro de 2016

De novo mar

[Esse texto pode ser lido separado (creio que tem sentido , mas não tenho certeza...) ou em continuidade dos seguintes:  Noventa dias de tormenta, Em terra, uma história, Um homem bom e Dos sonhos]

Eu só queria ver o mar. Pediu muito devagar a mulher, com os olhos de sonho. Agora. Sim. Vamos então.
Saíram pela porta lateral, passando por um caminho de pedras bem assentadas e cercado de verdes. Era uma estradinha que logo deu na areia fina. No fim de uma pequena subida avistou as primeiras vagas. Foi como se uma dor a invadisse. Soltou um longo ah...e logo reagiu tapando a boca, como se tivesse medo de tudo recomeçar. Tonteou. Calma. Em casa de enforcado não se fala em corda. A mulher conseguiu  rir baixo e depois desatou em choro livre. A outra a amparava, passando a mão nos seus cabelos. Vamos sente-se aqui.
Eu só queria entender porque me deixei levar tanto tempo, sabe? O naufrágio era certo, como certos são:  essa areia, céu, sol, eu e você. Eu sabia que não devia, mas me deixei levar e levar e levar. Não se culpe. Foi o melhor naquele momento. Não tenho tanta certeza. Agora não importa mais. O que você viveu ninguém pode mudar. Não sabia que podia ser tão doloroso. O quê. O amor. O amar. Amar. O mar.
Você não consegue falar das coisas de maneira comum. Sempre metafórica. Sim é cansativo, vício de profissão. O que você fazia. Eu era atriz. No teatro. E ficou surpresa e alegre em lembrar. Entendo melhor agora. Entende o quê. Você está vivendo um papel. Antes fosse. Eu estava brincando. Não deixa de ter sua razão. Eu inventei uma história de amor, parte por parte, cena por cena e depois a interpretei. Mas o roteiro se rebelou, criou outras páginas e personagens não previstos. O que era doçura virou ironia. O que era bonito endureceu. E a cena se desmanchou em atuações melodramáticas. E depois trágicas. As luzes se apagaram. Os espectadores se decepcionaram.  O espetáculo ficou sem final. Acabou de repente, como começou.  Admiro sua imaginação. Não admire. Ela só me fez sofrer ainda mais fundo. Sim, mas só ela pode te curar. A mulher admirou a argúcia de Páscoa. Elas conviviam há tão pouco tempo e a outra já a conhecia como pouca gente. Essa mulher deve ter passado por coisas que nem tenho ideia. E com carinho buscou os olhos da outra, escuros e brilhantes. Ela aquiesceu, tinha uma paz de quem superou o sofrer, era mais experiente e mais sábia.
Ficaram quietas por um quarto de hora. O vento era forte e inflava os vestidos estampados das mulheres. Você precisa descobrir como chegou aqui. Eu não sei. Minha última imagem real é a de um quarto num apartamento, uma briga, as escadas, um carro, o caminho para minha casa e. Branco, branco, branco. Depois mar, mar, mar.

E o nome. Não me lembro. E como quer ser chamada. Bárbara. Gosto desse nome. Eu também. Quer voltar. Deixe-me olhar com calma para ele. Olhe o quanto quiser. Vou fumar um cigarro. Ah, eu gosto de cigarros. Sim. Quer um. Fumamos juntas. Pode ser. Umas baforadas e já me sentirei uma mulher nova. Riram-se.

domingo, 16 de agosto de 2015

De pássaros e gatos

A minha história com gatos começou bem cedo, nas férias encantadas da casa da minha avó,  em Conquista, Triângulo Mineiro, com gatos branquinhos e angorás. Bichanos, chaninhos.
Depois eu, menina de apartamento, quase não pude tê-los. A não ser um, que pulou da mangueira da casa vizinha para nossa área de serviço, e que eu carreguei no colo por uns dias, até que fugisse de novo. A minha tendência aos problemas respiratórios, desde muito novinha, tornava proibitiva a convivência. Mesmo assim segui adorando gatos.
Já casada, morando em uma casa grande tivemos alguns, mas não eram criados dentro. De uma hora para outra, essas pessoas que odeiam animais jogavam “bola” pra eles, suspeitávamos da vizinha. Sumiam.
Lembro-me também de uma gata que pariu em casa um gatinho cego. Cuidei dele com mamadeira, mas um dia amanheceu esticado. Uma outra ainda me doeu mais. Chamava-se Mia, presente de um amigo do teatro. Era alaranjada e seus olhos enormes e doces. Sumiu por uns dias e comecei a ficar preocupada. Perguntei aos meus onde será que ela estava e então não puderam mais esconder. Foi a filha que contou: encontraram a gata morta e enterraram no fundo do quintal, naquele dia mesmo do churrasco de família, reuniões que aconteciam em muitos domingos na casa antiga. Eu nem percebi nada, ficaram com dó de me contar. Eu chorei, sou chorona e gostava dela.
Na casa amarela tive gatos que perambulavam durante a obra e que até hoje vêm aqui. E a chegada de Riva, de quem já contei. É uma companhia para a solidão. Esses dias foi castrado e provocou uma crise em mim. Tenho esse direito? Ainda tive a ninhada de gatinhos deixados igualmente no quintal, quatro. Deram trabalho, mas acharam donos que até hoje me agradecem. E Branquinha que foi deixada nos fundos da casa, com olhos assustados e muita fome. Um amigo ficou com ela, acho que mais pra me ajudar. Ganhou um colar de strass e lugar macio pra dormir. Tenho notícias de que é muita arisca e quebra coisas à noite. Gatos.
De pássaros presos nunca gostei, mas o primeiro foi um canarinho. Uma amiga não tinha com quem deixar quando viajou e ele ficou na minha casa. Juquinha. Aprendei a cuidar dele. Cantava muito à tardinha. Bichos são bons para quem gosta de falar sozinha como eu. Rendem boas conversas. Quando me casei ele ficou em casa da minha mãe. Morreu de velhice? Acho que sim.
Quando morei num apartamento, ao chegar do Acre, onde trabalhei, encontrei um ninho de sabiá na janela do banheiro. Foram dias de estranha e curiosa convivência. Eram três filhotes e a mãe. Eles cresceram ali, colados ao vidro opaco e me alentaram naqueles dias sombrios. Com metáforas, por favor. Uma manhã já não estavam.
Um dia nessa casa de teto alto entrou um passarim, bem pequeno. Fiz de tudo para que saísse, mas ele não conseguia. Ficou, passou a noite, dando pequenos saltinhos sobre a cama onde estava e depois dormiu em cima de um quadro. Quando abri a porta do quarto de manhã,  ele estava lá, piando baixinho. Ficou voando pela casa até que arranjei um jeito arriscado para que saísse. Fechei tudo e deixei apenas uma fresta na janela de guilhotina. Então fui soltando lentamente, até que ele entendeu e voou.
Ontem estava trabalhando quando ouvi sons que misturavam miados e pios. Custei a entender que Riva tinha caçado um pássaro, que lutava para se soltar, na cozinha. Foi um desespero. Corri em direção a eles, toquei pra fora. Queria que ele soltasse o pássaro, mas não sabia se já estava muito machucado,  se adiantaria  alguma coisa. Então queria que ele saísse e terminasse aquilo longe de mim. Ele fugiu para o meu quarto, debaixo da cama. Fiquei mais nervosa. Gritei. Até que o pássaro se soltou. E estava vivo. Instantes de alegria e alívio. Toquei Riva do quarto, maldizendo seus instintos. Tranquei a porta. Respirando pensei um pouco no que fazer. Voltei lá e vi que ele parecia bem, mas estava mancando um pouco e tinha perdido todas as penas do rabo. Não conseguiria voar. Precisava de um tempo. Fui à loja de bichos e comprei uma gaiola e alpiste. Pedi ajuda a um amigo, o mesmo que levou Branquinha. Colocamos o pássaro dentro da gaiola. Era um pardal? Ele ficou quieto, muito quieto. Pendurei a gaiola na tesoura do telhado. Então saí para trabalhar. Riva só me olhando, sabendo que desaprovara aquilo.
Fui com a sensação de que o pássaro não sobreviveria. Ao voltar, à noite, observei que ele estava na mesma posição. Aperto no peito. Mais um que vinha se somar aos outros que me assaltam. Sempre à noite. Evitei pensar. Amanhã, amanhã eu resolvo isso.
Logo cedo já sabia que tinha morrido. Procurei minha enxada, abri uma pequena cova. Perto de uma roseira. Abri a gaiola, nas mãos um pedaço de pano velho, resto de um pijama. Aquele serzinho, tão leve. Por isso voam. Ajeitei o pano, enrolei, tampando o bico longo. Pardais tem bicos assim? Acariciei-o um pouco e rezei, antes de deixar o corpo no fundo da covinha. Era a primeira vez que enterrava um passarinho. Puxei a terra com as mãos, pouca. Depois por cima coloquei uns tijolos. Da porta da sala Riva olhava, sem ter coragem de se aproximar.

Pássaros e gatos.  De tudo fiquei pensando: na natureza dos bichos. Na nossa natureza.



segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Dos sonhos


Logo depois de admitir que não se lembrava de seu nome, a mulher entrou em estado de silêncio. Não conseguiu dizer palavra. Mesmo o café com pão e manteiga, tão saboroso e nostálgico, arrancou dela qualquer som.
Recolhida ao quarto estava agora. Os olhos vazios, nem chorar mais conseguia. O rio de seus olhos secara. Sabia que precisava de um novo plano. “Preciso comer, preciso remar, preciso dormir, preciso chegar, preciso viver...” Assim atravessou a tormenta. Agora eram outras as necessidades. Estava sentada numa cadeira confortável que ficava perto da janela do quarto. Só então reparou que era uma suíte. Aquela porta à esquerda devia ser o banheiro. Caminhou até ele, abriu a porta e se deslumbrou com uma pequena banheira. Acreditou que um banho poderia fazer bem. Há quanto tempo não tomava um? Ela que gostava de chorar debaixo do chuveiro, deixando as lágrimas se misturarem ao jato morno. Ela que cantava de alegria ou de tristeza. Ela que... Despiu-se e viu seu corpo no espelho. Estava magro, os seios mais murchos, os pelos crescidos. Temperou a água e deixou que escorresse, enchendo a banheira. Entrou e deitou-se, molhando também os cabelos. Fechou os olhos, a sensação de água limpa e quente derreteu sua dureza, soltou pequenos ais. Queria ficar ali dias e dias, queria se liquefazer e depois ir pelo ralo, queria sumir. Só isso. Chega. Para. Reage. (Sempre aquela outra, do lado de lá, dando ordens, empurrando-a pra frente). Fez espuma com um sabão de ervas, esfregou-se, com vigor. Tirar a pele morta. Depois enxaguou-se usando a ducha. Puxou a toalha que estava na parede. Enrolou-se e saiu. O espelho agora embaçado não registrou a nova mulher. Mais leve, recendendo a sabonete. Fez um turbante com a toalha menor, adorava turbantes. E acreditava no poder deles. Foi enxugar-se no quarto. Queria agora era ter um vestido limpo e novo para usar. Em cima da cama ele estava. Era azul-esverdeado com ramagens rosadas na barra. Decotado como gostava. Do lado, roupas de baixo brancas, calcinhas e um sutiã. Tudo ali parecia tão improvável, a mulher nem questionou. Como uma menina obediente trocou-se. A roupa ficou um pouco larga, mas agradou-lhe as cores e a textura, crepe. Voltou ao banheiro, penteou os cabelos que davam pelos ombros. Alegrou-se com o que viu. Quem ela era? Marina. Ana. Bárbara. Clarice. Selma. Inês. Beatriz. Nina. Maria. Preciso entender, preciso lembrar, preciso voltar, preciso recomeçar. Preciso lembrar, preciso recomeçar, preciso lembrar. Preciso voltar, preciso recomeçar, preciso entender. Sabia já do que precisava. Decidida a sair e investigar quem era, assustou-se com uma batida na porta. Quem é. Você não me conhece. Você não me conhece. Então empatamos. Riram-se as duas. E abriu-se a porta.
A mulher era negra, muito alta e tinha um sorriso franco no rosto. Abraçou-a com força. O vestido caiu bem, ficou bonita. Obrigada. Como você sabia o tamanho. Vi você no café da manhã. Ah. Trabalho aqui há muito anos. O que faz. Massagens terapêuticas, aromaterapia, reiki. Como se chama. Páscoa. O nome ressoou. Páscoa. Era um nome pouco comum. Mas a si era comum. Páscoa. Belo nome. Sim gosto muito dele. Venha comigo. Vou te oferecer meus serviços. Agora. Sim.
Ia saindo descalça, mas do lado da cama havia umas sandálias rasteiras de couro.  Calçou-as, ficaram exatas.  Apenas sorriu pra mulher. Meus pés são grandes. Os meus também. E riram de novo. Há quanto tempo não se ria. Nem sabia mais.
Atravessaram o mesmo salão de cedo e saíram pelos jardins. A direita uma sala grande, toda de vidros e cortinas. A mulher abriu a porta convidou-a a entrar. O lugar cheirava a incenso e tinha luzes artificiais. Uma música suave e repetitiva ao fundo. Deite-se aqui. A mulher obedeceu. Então Páscoa começou a aplicar-lhe a impostura das mãos, nos chacras. Sentia o calor de cada parte, todo o seu corpo em paz. Quase adormeceu, mantendo um estado de transe e relaxamento. Depois ouviu o pedido, dito em voz baixa e pausada: Agora quero que me conte seus sonhos.
A chave. A porta da memória se abriu. Ela desatou a fala, mas era calma e profunda.
“Quando ele foi embora chorei muitas noites. Minha cama virou um barco/mar. Naufraguei. Lutei para não sucumbir. Não sonhava nada. Dias de olhos abertos. Medo de afogar. Medo de saber. Quando comecei a sonhar parecia real. Era como as mil e uma noites, um sonho dentro do outro.
Nas primeiras noites sonhei que nosso amor era uma árvore. Sozinha não podia mais regar aquele arbusto. E então esquentei óleo de cozinha e joguei nas suas raízes para que secasse. Ela permanecia firme e não vergava. No dia seguinte estava com uma flor para mim. E o ritual se repetia, tantas vezes, tantas noites. Queria que aquilo acabasse. Numa manhã, achei um rastro. Era seiva, tinha escorrido para longe.
Nas segundas noites sonhei que nosso amor era um gato. Sozinha não podia mais alimentar aquele bicho. E então comprei veneno de ratos e coloquei na sua comida para que morresse. Ele comia tudo, devolvia, mas sobrevivia. No dia seguinte estava com um ronronar para mim. E o ritual se repetia, outras vezes, outras noites. Tudo parecia insano. Numa manhã, achei uma escama. Era peixe, tinha nadado para longe.”
Nas terceiras noites sonhei que nosso amor era uma criança de colo. Sozinha não podia mais criar aquele bebê. E então cravei minhas unhas em seu pescoço, para que não vivesse. Ele me olhava sem entender, mas não chorava. No dia seguinte estava com um sorriso para mim. E o ritual se repetia, noites sem fim. Era triste matar o amor. Numa manhã achei uma pena. Era pássaro, tinha voado para longe.
Três vezes matado, três vezes morrido, três vezes acabado.”

 Assim terminou a mulher. E abriu os olhos saindo do estado de sono.



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sábado, 25 de julho de 2015

Um homem bom


( Esse texto pode ser lido separadamente ou em sequência de dois outros: Noventa dias de tormenta - 19/10/2014  e  Em terra, uma história - 23/11/2014)

Aproximando-se das luzes, a primeira casa que viu era azul. Com muitas janelas e uma porta grande. Na lateral tinha uma varanda e, numa rede, alguém fumava. Caminhou com firmeza naquela direção. Abriu uma portinhola de madeira, numa cerca baixa que circundava a área, tudo muito caprichado. Parecia uma pousada. Era.
O homem se assustou com seu vulto. Levantou-se da rede, jogando na areia o resto de cigarro, uma cigarrilha de aroma adocicado, que lembrava canela. O que é isso minha senhora. Vai  entrando assim sem nem bater. Desculpa eu não queria incomodar é que. Quem é a senhora. Eu sobrevivi a um naufrágio, naveguei sem rumo durante não sei quantos dias. Meu deus. Eu preciso de.
A mulher desfaleceu antes de terminar a frase. A emoção de falar com uma pessoa depois de tanto tempo, a fome, a sede, a exaustão, foram razões mais do que suficientes, para que viesse ao chão com todo o seu pouco peso. Emagrecera mais de 10 quilos.
Acordou numa cama patente, parecida com a que herdara da sua avó, quando solteira e que depois ficou para o filho mais velho. Filho, cama, avó, casa. Novas imagens vieram. Os lençóis tinham uma estampa de flores rosadas. Por cima uma coberta tecida com fios coloridos, dessas que as pessoas vendem no litoral. Dois travesseiros apoiavam seu tronco. Era bom e macio. Um pequeno abajur laranja deixava o quarto pequeno cheio de luz delicada. Do lado da cama um pequeno caixote antigo. Uma moringa, um copo. Virou e serviu-se de água. Tomou com sofreguidão, dois copos.  No mar a água que recolhia era suja e salobra. Água de chuva, misturada com a maresia, bebida em pequenos goles. Tudo era feito com parcimônia. Não sabia se sobreviveria, mas sua dureza de cabra ensinou-lhe a viver aquela adversidade com economia.
Não tinha ideia da hora. Pelo friozinho e silêncio devia ser madrugada alta. Olhou suas mãos, seu corpo. Estava limpo. Mas não se lembrava de ter tomado banho. Lembrava-se de ter visto a casa, entrado no terreno e então tudo escureceu. Fechados os olhos, na pele sentia uma tolha molhada e morna, como se dela fora o corpo de Diadorim morto, sendo limpo pela mulher do Hermógenes. Sim, alguém limpara seu corpo magro e sujo antes de meter-lhe em lençóis alvos. Vestia uma camisola de algodão longa. Sem roupas de baixo. Estremeceu levemente ao pensar que pudesse ser o homem. Ele tinha um leve sotaque, era um estrangeiro. As cãs embranquecidas, o cabelo farto e ainda escuro. Tinha um rosto duro e uma voz que ficava no ar. Então ela lembrou-se de. Fechou os olhos com força para não ver aquela imagem. Funcionou. Eu vou dormir um pouco mais, pensou. Virou-se para o lado esquerdo e cobriu-se até a cabeça. Pegou no sono novamente. Os sonhos vieram. Ela peixe, dentro de um rio esverdeado, os cabelos longos e louros, como Ofélia. Mas não estava morta, nadava entre outros seres e flores, ramagens. Corpo deslizante na água doce, depois de tanto sal.
Acordou com sons cotidianos. A cozinha ficava perto, ouviu vozes de mulheres, barulhos de louça, talheres. Cheiro de café. Café. Café. Seu cheiro sedutor ergueu o corpo da mulher, que num átimo já estava abrindo a porta, passando por um pequeno corredor e chegando ao salão. Alguns hóspedes estavam por ali. Olharam-na com olhos curiosos. A mulher náufraga. A louca do mar. A sereia cansada, diziam baixo. Nem deu ouvidos. Continuou caminhando, descalça. O aroma inconfundível e a promessa de comida foram conduzindo aquela mulher de olhos vagos, cor de mel, os cabelos presos numa fita encarnada, para a varanda que ficava nos fundos da casa, cercada de verdes, o terreiro banhado de sol.  Sentou-se à mesa pequena, de duas cadeiras. Era o lugar mais afastado, num canto. Qualquer esforço, depois de tanto tempo em privação, parecia enorme. Ficou  respirando, cobriu o rosto com as mãos, hábito antigo. Por alguns minutos permaneceu quieta, juntando forças. Quando saiu daquela suspensão, deu com os olhos dele olhando pra ela. Era fundo aquele olhar. Mas tinha uma suavidade, uma vontade de compreender. Mesmo assim ela, bicho assustado, fez um movimento pra se levantar. Ele segurou seu braço com firmeza. Fica. Você precisa comer um pouco. Ela aceitou a quase ordem dele, a voz era macia. Voz de homem bom, pensou. Vou pedir pra prepararem um mingau para você. Eu quero café e pão com manteiga. Ele riu. Está bem. Foi buscar.
Ele preparou o pão de sal, serviu o café numa caneca de louça e trouxe. Pronto, aqui está seu desejo. Ela sorriu  e começou a comer, meio sem jeito, os farelos caindo no colo. Depois tomou um grande gole do café sem açúcar, forte. Os olhos grudados naquele pequeno banquete. Não sei ainda seu nome. Ela fez uma pausa longa. Nem eu, respondeu. E veio um silêncio.


domingo, 31 de maio de 2015

Dia de.



Fazer o domingo de novo é arrancar a pele pra que a carne viva. 
Cavucar a terra até que a mãe sangre.
Bater no peito pra lembrar da dor. 
Espatifar os vidros das garrafas solitárias, no fundo da casa. 
Deixar o choro de misturar ao solo, regar o mato. Esse que cresce. Sempre.  
Beber a água suja da bacia-mar. 
Com paciência fazer o barquinho de papel, como se fosse brincar.  
É se ver no espelho ainda forte. 
Preparar a broa e esperar seu perfume. 
Incensar a casa cantando. 
Cuidar das roupas e das pequenas lembranças para que nada falte. 
E virar a Dona Doida. A que mistura Tristeza com Alegria.
E  lembrar da doce Cora e suas roseiras. 
E chamar Clarice puxando o traço do delineador. 
Trazer Frida para a mesa do I Ching. 
Lembrar das mulheres da minha ancestralidade. 
Evocar minha doce avó Páscoa. Esperar meu duplo: a mulher xamã. Receber a garota de cabelos curtos, suave. E a moça das tatuagens que me enigmam. Companheiras. 
De extremos faço meu domingo.
 De delicadezas e pequenas violências. 
De ar e fogo. Quente e frio. Coturnos e pés descalços. 
Que seja mais um dia do resto de nossas vidas, ainda que a vida não tenha necessariamente um resto.

domingo, 10 de maio de 2015

Das mães

Hoje eu falo das mães. Da mãe do Francisco, da mãe do Lucas, da mãe da Joana, da mãe da Consuelo, da mãe da Carmen, da mãe da Sílvia, da mãe do Paulo, da mãe do Tomaz, da mãe do Gustavo, da mãe do Rafael, da mãe da Izabel, da mãe da Thaís, da mãe da Natália, da mãe da Fernanda, da mãe do Léo, da mãe do João, da mãe do Arthur, da mãe da Cely, da mãe da Maria Luiza, da mãe da Luna. De todas.
Das mães que amamentam, das que criam seus filhos sozinhas, das que tem ao seu lado um pai,  das que os amam, das que os rejeitam, das que batem nos filhos, das que os protegem. De todas.
Falo das mães que planejaram ter seus filhos, das que fizeram inseminação artificial, das que os tiveram por descuido, das que os tiveram por tesão, das que os tiveram por amor, das que os adotaram, das que os abortaram. De todas.
Das que fizeram das tripas coração, das que tiveram seus peitos inflamados, das que fizeram cesárea, das que pariram de cócoras, das que morreram de parto. De todas.
Falo das que criam seus filhos entre lençóis de linho e babás, das que os criam nos trapos, ao léu, das que deram a eles leite nan, das que fizeram papinhas, das que compraram os  potes na farmácia. De todas.
Das que lavaram as fraldas de pano, das que procuraram as descartáveis mais baratas, das que usam só o modelo mais avançado. De todas.
Das que os levaram ao médico de madrugada, das que perderam noites de sono, das que tiveram medo de perdê-los, das que os perderam. De todas.
Das desnaturadas, das dedicadas, das cansadas, das displicentes, das castradoras, das compreensivas, das enlouquecidas, das amorosas, das adolescentes, das temporãs, das insones, das insanas, das matronas, das edipianas, das novatas, das experientes.
Todas as mães do mundo merecem ser felizes. Todas.
Que sua função não seja considerada natural, mas uma escolha, uma conquista, uma benção.
Que ser mãe seja um direito e não uma imposição da sociedade, que seja um exercício pleno e feliz: compartilhar a vida, o peito, o afago, a convivência.
É isso que desejo a todos nós. Alegria mesmo na adversidade.
Feliz todo dia das mães.

ps: esse texto foi postado anteriormente no blog "Solteiras e descoladas".Peço licença...