domingo, 28 de dezembro de 2014

Plano de voo

(gosto de vôo com assento, mas sei que não se usa mais)

Não, não vou cair na tentação. De fazer o balanço do ano. De reviver. De relembrar. Vou apostar no futuro. Ele começa hoje, alguns dias antes de terminar 2014. Nesse domingo, último do ano.

Nesse novo tempo quero muito. Mas sem pressa. Quero querer.
Meditar. Limpar corpo e alma no silêncio da natureza.
Ver o mar. Virar um pouco índia, mergulhar. Nas águas salgadas me purificar.
Comer e cozinhar.
Parar de fumar.
Tatuar palavras na pele. As primeiras serão: espelho de mim, corpo-alma.
Atuar. Trazer a atriz adormecida para dentro da casa e quintal. Compartilhar.
Buscar relações de equilíbrio. Apostar na troca, sem cobrança e expectativa.
Deixar os cabelos crescerem.
Cuidar de mim.
Viajar.
Experimentar novos lugares.
Aprender a cobrar pelo meu trabalho.
Achar que mereço.
Encontrar na família, amigos.
Nos amigos, afeto.
No trabalho, gosto.
Passear mais com minha mãe.
Arrumar a casa, por fora.
Ficar calma, por dentro.
Dormir sem sobressalto.
Voltar a andar.
Talvez correr.
Plantar uma horta: manjericão, alecrim, cebolinha, alface.
Plantar roseiras.
Ver o pomar frutificar.
Viver com alegria e fé.
Aos poucos e intensamente.
Como se tivesse acabado de nascer.











domingo, 21 de dezembro de 2014

7 dias


 Domingo. Chego atrasada para o encontro com minha irmã que vai me ajudar a comprar uma roupa. Tomamos um café no shopping lotado. Tenho dificuldades com comprar nem que seja uma coisa à toa. Costumo desistir no meio. Consuelo me faz experimentar muitos vestidos, que pacientemente escolhe. Deixo alguns reservados e prometo voltar. Mas na verdade não gostei de quase nenhum. Na segunda loja a maratona recomeça. Visto um macacão estampado. Isso é estampa de bicho?. Ah...sim , mas bem discreta. Mas eu sou contra estampas de bicho. Ah...mas ficou lindo! É acho que vou levar. Preciso experimentar coisas novas. Depois parece um vestido com flores e ramagens. Acho que esse ficou melhor. Leva os dois. Não posso. Tô sem grana. Vai levar, sim.  Ajudo a pagar. Parcela de 6 vezes? Sim. Minha mãe a outra irmã chegam e me convencem. Ficou ótimo! Saio com a sacola da loja chic. Há quanto tempo não fazia isso. Até gostei. Sentamos para almoçar juntas. Carne. Não costumo comer muita carne, mas preciso aprender a fazer coisas que não faço. Vai me fazer bem. Tomamos chope. Combinamos coisas do Natal. Depois vou ao encontro de amigos, de táxi. Comidas de terras do norte, maniçoba, tacacá, mousse de bacuri. Tantos sabores e carinhos, na casa da Gigi, nova querida.  Vinho. Cigarros fumados na área de serviço. Risadas. Quase feliz. Volto tarde para casa, trocando impressões com minha parceira de vida e trabalho, Denise.

Segunda. Dia de trabalho, rescaldo do ano, correndo atrás de grana, pagando contas.

Terça. Levo minha mãe na terapia. Reencontro os olhos verdes da moça que nos atende. Tanta doçura e compreensão. Depois do almoço vou a uma consulta de tarô. Minha mãe acha o máximo. Ela vai adivinhar seu futuro? Não, mãe. Os oráculos leem nosso inconsciente. Apenas. Quatro horas de conversa com uma maga, minha vida dos últimos 5 anos passa em revista. Lembro-me da primeira carta no centro da mandala que se forma. The Devil. Você já perdeu muita energia com isso. Passou. Foi bom, mas terminou. Agora os caminhos estão se abrindo de novo. Novo tempo, novas parcerias, nova vida. Saio com a cabeça cheia de tantas imagens e palavras. A energia se renova. Vou ao encontro da filha, já impaciente com minha demora. Duas vezes shopping em uma semana. Estou mudada mesmo. Ganho uma sandália dourada. Saltos vão me fazer bem, deixar essa mulher mais confiante. Depois de chope e tira-gosto num lugar lotado e com mulheres, que histéricas, comemoravam o Natal da firma, saímos. Na rua corremos para pegar o 4403, quase no sinal. Que sorte!  Em casa somos surpreendidas por quatro filhotes de gato no quintal. Coloco leite e comida, mas deixo-os do lado de fora, com uma caixa de papelão para dormirem.

Quarta. Depois do café com a filha resolvo colocar os gatinhos dentro de casa, no meu quarto e banheiro. Riva, o gato que acolhi uns dois meses antes, está agitado. Vou ter que achar um lar para eles. Começo uma campanha com fotos na internet. Ligo para mil lugares. Gatos nessa época? Difícil. À noite caio na besteira de vasculhar fotos e vídeos. Dói de novo. Divido um ravióli com a filha, que chega do trabalho. Mas não sinto muito o gosto. A asma volta com força, quase não durmo. O quarto com cheiro dos gatos ajudou. Uso a bombinha muitas vezes. As mulheres são mesmo loucas.

Quinta. Faxina no galpão. Quase não consigo fazer nada. Limpo as cadeiras junto com a moça. Compro remédios. Vou parar de fumar. Juro. Não almoço. Saio para ir ao banco. Depois fico em casa. A filha avisa que vai sair com as amigas. Não devo ficar aqui. Ligo para um amigo e vamos ao cinema. Hobbit, 3D, no shopping. Três vezes em uma semana. Foi divertido. Nas cenas de amor, chorei. Sou mesmo uma manteiga derretida.

Sexta. Consegui dormir bem. Saio cedo para a terapia. As mulheres que me ajudam a dar conta da vida. Levo um livro, “A dor de amar”. Leio um trecho para ela. Esse alguém que te ouve e refaz junto um percurso. Sinto como quando andamos de bicicleta com rodinhas atrás, até aprender a se equilibrar. Despeço-me dela e agradeço. Você está sendo muito importante para mim. A tarde ajudo minha nora nas arrumações. È bom estar em movimento. Ela é doce e conversamos, enquanto executamos as tarefas ditas femininas. Volto para casa. Estou mais animada. Um dos gatinhos consegue um novo lar. O ano do cavalo quase me atropelou, mas no finzinho dele consigo montá-lo e dizer: agora vou com você.

Sábado. Durmo sem colocar o despertador. Vou com a filha fazer as unhas. Vermelhas. Há quanto tempo não fazia isso. De longe me vejo no espelho do salão. Toda vez que tento ficar bonita sua lembrança volta. Respiro, respiro. Vai passar. De volta à casa as tarefas domésticas me mantêm ocupada. Depois ganho maquiagem pelas mãos da filha. Subo a rua. Chego cheia de coisas na sacola. Beijo o filho, passo sua camisa. Convidados chegando, mesa posta, música. Família. Comida. Alegria. Hora do brinde. Procuro meu antigo companheiro, pai dos meus filhos. Peço para dar o braço a ele. Ficamos assim em silêncio. E assim assistimos à cena. Cartas lindas de amor trocadas pelo casal que se une. Lágrimas saltam dos olhos. Abraços, bênçãos. Que deus proteja o amor de vocês. A festa continua, mais solta. Danço. Bebo. Por dentro agradeço. São tantos que nos cercam. Rose e sua família, pessoas tão especiais. Minha mãe, a rainha. Meus filhos, amores. Seus amores, pessoas bonitas. Meus irmãos, sobrinhos, meus cunhados, primos. Tantas histórias. A família que vem do planalto. Tão fácil gostar dela. Nossos amigos. O garçom jovem que serve as bebidas. Tudo nos afeta. Tudo é afeto.


Domingo. Dia de descanso e recomeço. Que a última semana do ano seja leve.

domingo, 14 de dezembro de 2014

A queda



Saio pelo terceiro dia seguido para caminhar. Retomo assim algum exercício físico, para organizar corpo e a cabeça. Também por recomendações médicas. Bom pra asma, bom para ansiedade. Tantas desculpas serviram para que eu parasse. Todas furadas. Mas já me conheço o suficiente. Enquanto a necessidade extrema de endorfina  não bate a porta vou me enrolando. Apesar de gostar de muitas atividades. Experimentei  várias. Gosto das que juntam corpo e mente, como t’ai chi e ioga. Mas, por incrível que pareça, gostei de musculação. Dos aeróbicos gosto de nadar, correr.  E andar. O mais simples de todos. O mais próximo da nossa “estrada”.
Coloco meu tênis furado, bermuda presa com alfinete na cintura e uma camiseta. Passo filtro solar, não posso mais abusar do sol. Que pena. Saio antes de 7, cada vez acordo mais cedo, a noite não tem sido boa companheira. Caminho por uma avenida próxima de casa. Poderia ser bonita e bem cuidada, mas não é. O passeio é largo, até chegar perto do Parque Ecológico são uns dois quilômetros. Ida e volta: quatro. Costumo fazer em uns 40 minutos. No percurso vou tentando me convencer de que, sim, está tudo bem. O pior já passou. O ano acabando, algumas vitórias, fechamento de processos, natal em sítio, retiro espiritual no ano novo, promessa de mar no verão. Meu andar vai ficando confiante, abro os ombros e deixo meu aspecto de cansada para trás. Inspiro com força o ar. Essa asma idiota precisa acabar. Você precisa mesmo parar de fumar, sua louca.
Quase perto do retorno começo a organizar o que devo dizer na terapia, contar do turbilhão da semana anterior: estreia, encontro, crise respiratória, escrita, dúvida, choro, família. Pensava já com distância, com discernimento. No final do passeio, perto de um restaurante que frequentava e que se chama agora Prainha, faço uma curva e volto. O passeio apresenta um ligeiro aclive. E em segundos, por uma pisada em falso, escorregão, tontura, caio. Não foi pequeno tombo não. Vim batendo todas as partes dos braços e pernas no muro até chegar ao chão. E bater a cabeça no cimento. Alguém de um carro que estava parado no sinal pergunta se preciso de ajuda. Não vejo seu rosto, mas que digo que não, obrigada. Consigo levantar. A perna esquerda sangra um pouco, a cabeça tem um enorme galo, os ante-braços ficaram raspados. Tudo me dói. Volto a caminhar, vacilante. As lágrimas escorrem.  Desabo. Todas as minhas novas crenças se vão. Fico a me lamentar, começo a falar sozinha. Culpo o mundo pela minha queda. A vida é injusta.Tenho escutado isso de tantas pessoas. E não perco essa mania de querer explicar tudo que me acontece de maneira simbólica. Metaforicamente. (Isso é cansativo, bem sei. Mas como evitar? Se tudo que faço tem a ver com significar?). Em casa, um pouco mais refeita, coloco gelo nos pontos doloridos, a sensação de anestesia é boa. O gato vem me consolar. Esse gatinho entende tudo melhor que eu. Vou ficar com alguns sinais roxos, pele lanhada, intumescências, mas sumirão logo.
Dias depois, em casa de minha mãe, falo com ela do tombo. Mostro as marcas.  Ela me acarinha. (Ah! as mães...) E fica querendo saber como foi. Solidária, tenta mais uma vez explicar o dia em que caiu no quarto e fissurou uma costela, relembrar o que tinha acontecido. Descreve tudo minuciosamente, mas não encontra a resposta. Isso tornou-se quase uma obsessão para ela. Respiro fundo. Mãe, digo com paciência, queda não tem explicação. Se a gente soubesse o porquê não aconteceria.

Simples demais. Sem metáforas, por favor.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Um dia, o gato


Acordo cedo e tomo café com a filha. O dia promete muito trabalho. Teatro é coisa que cansa, bem sei. Já pensei em desistir, mas o tempo passou e não encontrei nada que me motivasse tanto. Nem que fosse tão (im)permanente como a vida. Deve ser por isso que prossegui.
Escuto um ruído constante, parece um pio de alguma ave, dessas que frequentam o quintal cheio de mato e sementes, abundantes pelas chuvas dos últimos dias. Fico trabalhando, sem poder me deslindar do que faço, mas com o ouvido atento. Cessa. Depois de um tempo recomeça. O que seria? Parece um pedido de ajuda. Os intervalos vão ficando menores. Enfim levanto, um pouco contrariada. No meio do mato úmido, próximo ao portão, um filhote de gato, magro, com um olho machucado, mia agora sem parar. Gosto de gatos. Mas confesso: fico irritada. Alguém jogou aquele pobrezinho ali, talvez passando pelo cano de leitura da Copasa. Volto à cozinha e pego uns pedaços de pão integral e molho com água. Leite não tinha. Ele come um pouco. Volto ao trabalho, sem concentração. Logo preciso sair. Não sei o que fazer com ele, tempo curto pra cuidar de alguém. E as minhas últimas tentativas de cuidar, não valeram muito a pena. Ou valeram? Cuidado demais sufoca. Bem sei. Disparo um comando para que minha cabeça pare com aquelas ideias, louca buscando respostas onde não há. Penso que o gatinho poderia ir embora, por conta própria, passando pelo vão do portão, que estava se enferrujando sem pintura. Saio um pouco culpada, essa nova pessoa, mais egoísta, custa a combinar comigo. Cuide de si, escuto sempre. Então, gato, sinto muito. Vou ter que te deixar entregue à própria sorte.
Passo o dia na lida, passando por muitos problemas e lugares, como todos os mortais. À noite, entre companheiros, falo dele. Eles me encorajam a ter um animal. Vai ser bom pra você. Mas eu tenho asma. Eles são carinhosos, divertidos. Minha filha não gosta de gatos. É fácil de cuidar. Não. Agora não. Chego bem tarde, meus amigos me deixam de carro no portão. Do lado de fora ouvem-se os miados, altos. Sim, o gato sobrevivera. Abro o portão, todos olham. Pronto, agora com testemunhas, não tenho como escapar. Pego o gato sem jeito, há quanto tempo não pegava em um? Nem parecia aquela garota da foto que, com uns dois anos, abraçava um gato angorá enorme, no quintal da sua avó. Em casa arrumo uma caixa de sapato, uma camisa velha e ensino que ele fique ali. Acho um resto de iogurte na geladeira, sim a casa andava fraca de comida, andei mesmo sem apetite. Misturo um pouco d’água e coloco num pote de margarina. O gatinho gosta. Toma com sofreguidão. Seu olho muito vermelho e melado, pode ser uma conjuntivite. Ou ele pode ser cego. Isso me enche de compaixão. Se ele for mesmo cego como posso deixá-lo? Pelo celular conto à filha, que estava fora, a novidade. Ela não demonstra nenhum interesse por um gato em nossa casa. Preocupada vou dormir e deixo que ele fique na sala, com a luz da cozinha acesa. Ele se comporta muito bem, sem nem um pio, digo, miado. Dormiu na caixinha que arrumei. Fico feliz, entendo alguma coisa de gatos. Já tive outros, há muito tempo, criados fora de casa. No outro dia vou à farmácia e pergunto a moça o que posso usar no olho de um gato. Ela me vende um frasco de soro fisiológico. Mas alerta: se for conjuntivite tem que usar um colírio com antibiótico. Em casa ele deixa que eu limpe seus olhos, até gosta, parece receber um carinho. Compro leite e ração, da melhor marca. Gatos custam caro. Bem sei. No terceiro dia, com pouca melhora da inflamação, consigo marcar uma veterinária, Dra. Marlene. Ele é levado dentro daquelas maletas. Já está bem esperto, foge quando vou procurá-lo. Volta de lá medicado, e com uma dose de penicilina para gripe. Notei mesmo que ele espirrava. Como a gente. Compro o colírio. Compro areia para suas necessidades. Potinho para ração, água e leite. Já tem nome, Riva. Nome de personagem, claro. O que seria da gente sem a ficção. Pelo telefone, a filha alerta que não quer gato quando voltar. Quem é a mãe mesmo? Trocamos de papéis, muitas vezes. Ela me dá muitos conselhos. De mãe para filha. Vou pensando no que faço com Riva, enquanto me afeiçoo a ele. Anda por todos os lugares, vai tomando conta de tudo. Tapetes, canetas, roupas, tudo vira brinquedo. Diversão das noites solitárias. O olho ferido se abre, me olha. A filha chega. Riva, dono da casa. Ela reage bem. Embora o combinado seja arranjar um novo lar para o hóspede. Com gente em casa Riva fica muito feliz. Inventa tanta maluquice. Usos estranhos para coisas banais. A gente acaba dando risada junto. O que tem de bicho na gente ainda? Muito pouco. Eles apenas vivem sua natureza, Clarice que o diga. E o assunto delicado vai ficando pra depois. E depois. Um dia chego em casa e a filha relata suas aventuras com o gato. Andaram até brincando juntos. Estão se entendendo.

Nem preciso dizer que Riva ficou. Enquanto escrevo ele se enfia debaixo do tapete, vem pro meu colo, pisa no teclado, dorme dentro de um cesto, tenta matar aleluias que caem do teto. E muitas vezes, quieto, olha para o nada. Os estados mudam muito rápido. Isso me impressiona. Prontidão e serenidade se equilibram. Algo em mim é acionado quando estamos próximos. Uma calma. Um aceitar. Um reagir. Preciso dele agora. Seja bem vindo, Riva.

domingo, 30 de novembro de 2014

Oxigênio



 Acorda assustada às 4h30 da manhã. Falta-lhe o ar. Os pulmões cheios. A tristeza ainda não foi embora então? Como demora. A asma é assim: ronda, ronda e quando se instala é pra valer. Desde criança soube disso. Quem mandou ficar fumando cigarros, quatro por dia, como se fosse uma garota. Bem feito! A chiadeira, felino no peito, cresce na madrugada. Cama fria, sem carinho, chuva lá fora, umedecendo a alma. E aqui o desespero pelo ar. Quanto mais se puxa menos entra. Então ela se levanta, pensa num banho quente porque o vapor pode ajudar. Pelo menos tinha uma suíte, ideia que vingara porque queria ter privacidade com seu bem. Agora pra que servia? Besteira esses luxos. Serve, não serve. Mania de pensar nos contrários, negar o que desejou. Era um exercício necessário agora. (Depois refaço tudo, para o bem de todos, na minha cabeça doida sou eu). Chuveiro com água pelando, vidro do box, outro luxinho, embaçado. Volta pra cama depois de se enxugar, os cabelos molharam um pouco. Encosta-se nos dois travesseiros, inquieta. Usa a primeira vez a bombinha. Dois jatos. Droga que alivia. Não faz efeito. Sua ansiedade não deixa. Resolve tomar chá de hortelã, com um pouco de mel. Toma bem quente. Melhora um  pouco. Minutos. Mas logo a falta, a falta, sempre essa falta. De ar. Será que eu posso morrer assim? Sentiu medo. A filha dormia ao lado, cansada de uma viagem longa. Não teve coragem de acordá-la. Vai passar. Fixa o olhar nos azulejos da cozinha. Eles. Resolve ir ao posto médico. Tinha um plano particular, mas perdera, sem grana pra pagar. Usa de novo a bombinha. Só mais essa vez. Liga para o ponto de táxi. Não atendem. Vai andando devagar. Sobe a rua cumprida. Passa perto do supermercado, lembra-se das compras que faziam juntos, vinho, cerveja, comida. Tudo era motivo para. Uma alegria de compartilhar. Era bom. Era. Chega ofegante na avenida. Mais um pouco e se apresenta na janelinha do posto. Ficha. Depois passa pela triagem e força um pouco a falta de ar. A mulher coloca um medidor no seu dedo indicador e garante: ventilação normal. Pulseirinha verde. Ah...quer dizer que estou boa? Fala com ironia. A moça responde com paciência: não foi isso que eu quis dizer. Passa para outro local, parece um depósito. Telhas metálicas, tapumes de madeirite, um container servindo de consultório. Pensa um pouco nas dificuldades de quem mora longe do centro, no descaso com as pessoas menos favorecidas. Desanimada, chora. Alguns olham. Azar, pensa. Sou assim. Depois de uns 15 minutos escuta seu nome. Maria Aparecida.

Apresento meus olhos marejados e minha insuficiência respiratória à Dra. Carla, tão nova. Ela escuta. Desabo, deixo as lágrimas correrem no rosto abatido. Ela pergunta se aconteceu alguma coisa. Eu digo que é difícil passar mal quando se está sozinha. Ela segura minha mão e diz: eu estou aqui. Aconselha que fique longe de poeira, animais, problemas demais. Seus olhos se parecem com os do gatinho que vive em casa há uma semana. (Hoje escreveria sobre ele, mas a asma foi mais urgente.) Olhos que me viram, no fundo. Com delicadeza escuta meu coração e os pulmões. O direito está mais tomado, diz. Prescreve uma inalação. Outra moça, enfermeira de sorriso doce, me ajuda. Só vejo mulheres atendendo no posto. A dedicação delas compensa a falta geral de condições do lugar. Coloco a máscara verde e consigo inspirar aquele ar úmido. Outra droga. Não choro mais. É preciso evitar esse vazamento público. Termina o tempo. Reanimada volto a ela e agradeço.

Arrumo os cabelos, presos num coque. Atravesso a sala de espera do posto, vejo aquelas pessoas. Penso no que adoece cada um. A menina pequena. A mulher de cabelos tingidos de louro. O homem velho com um curativo sobre o olho esquerdo. Saio. Venho caminhando pelas ruas, mais forte. Vou refazendo aquele percurso conhecido, que atravessava no nosso carro velho, cor vinho-metálico. O bar, a sorveteria, os correios, a padaria chic. Agora sou sozinha de novo. Preciso saber cuidar de mim. Preciso aprender a respirar. Todos os dias.

domingo, 23 de novembro de 2014

Em terra, uma história

Em terra a jornada também seria longa e acidentada. Começou a caminhar bem devagar. Seus pés estavam inchados. Usava umas botas quando estava no mar, mas numa das tempestades elas tinham naufragado também. A camisa muito rasgada tinha um grande talho na altura do seio esquerdo. E ela não usava sutiã. Arrumou-se como pode. Para pedir ajuda lá no vilarejo precisava estar pelo menos com aparência de uma pessoa normal. Mas normal não estava há muito tempo. Não tinha como explicar aquela viagem sem rumo. A viagem podia ser um delírio dela. Pensou em inventar uma história, gostava delas. “Travessias. Conhecem? Fica na divisa do Sergipe com Alagoas, vila pequena quase desconhecida, que uns amigos tinham indicado. Lugar maravilhoso, praias desertas, apenas uma pousada de belgas onde ficaram hospedados. Foi passar férias com o marido, saíram para um passeio breve, numa pequena embarcação. Era julho, no dia de seu aniversário de casamento. Tudo ia bem até que se desentenderam por uma bobagem, ciúmes. Passaram a noite brigados, deitados na cama sem se falar, um virado pra baixo e outro pra cima. Coisa raríssima. No dia seguinte ele sugeriu um passeio, queria que tudo ficasse bem, ela era a mulher da sua vida, queria viver com ela até ficarem velhinhos, todas essas coisas, etc. Ela aceitou as pazes, dependia dele pra tudo. Nem podia imaginar o que seria viver sem aquela pessoa. Saíram felizes, reconciliados. O dia bonito, ameno. Eles se abraçando, carinhosos. Como era bom estar ali. Estavam sem coletes. Pra quê? Nada podia acontecer. No meio do caminho ele disse que precisava contar uma coisa. Começou bem devagar, assim como se fosse algo bem natural. Sem olhar nos olhos dela. Estranho. Corpo meio afastado. Palavras que se formavam em câmera lenta nos seus lábios. Resumindo: tinha outra e queria ficar com ela. Preciso viver outra história. Era uma moça bacana, sabe? Artista também. Pintava gaiolas com pássaros dentro. Nossa que coisa horrível, pensou. Pássaro em gaiola nem em pintura. Ela só pensou. Ouviu até o fim. Engoliu o sempre choro. Depois disse que tudo bem. Entendia. A vida é injusta mesmo. E depois ela também tinha outros planos. Eles estavam se atrapalhando. Achando que podiam viver só de amor. Não, não se pode. Precisava dar mais certo na vida, fazer planos, voltar a ganhar dinheiro, viajar, fazer um  curso fora, estudar francês. Aparentava compreensão, mas um mundo inteiro passava pela sua cabeça. Vontade de esganar essa pessoa que agora desconhecia. Como é que pode? Aquela voz mansa. Aquelas promessas. Aquele amor esparramado. Sabe, ela apareceu na minha vida. Não tinha planejado. Queria mesmo era ficar contigo. Juro. Vamos fazer um ritual bem bonito. Continuo te amando. Eu também. Sempre. Ainda. Sempre ainda. De repente o choro veio, vazou dos seus olhos e com ele todos os ódios. Ele impassível. Ela ficou atrás de mim, sabe? Não tivemos nada ainda. Ah tá...até eu, que sou mais boba, posso acreditar nisso? O que isso importa também. Preservo seus arrepios. Foda-se. Falou pausadamente. Colocou o colete. Amarrou bem. Depois ficou em pé no barco. Ele se assustou. Quando se levantou para intervir ela o empurrou com força. Ele caiu.  Não sabia nadar. Remou rápido, o mais rápido que sua raiva permitiu. Ele ficou. Tão bonito. Ela nem olhou pra trás.”

Riu como se fosse louca. Se fosse. Ficou assustada. Não sabia como aquela história saíra de sua cabeça. Nunca faria isso. Talvez fosse a fome ou o cansaço. Essa versão levaria para a terapia. Vou escrever, quando tiver papel e caneta. Mas guardaria só pra ela. Para os outros diria “Fui passar férias com meu namorado, saímos para um passeio breve, numa pequena embarcação. Era julho, no dia de nosso aniversário de casamento. Nunca tinham navegado antes, mas o mar estava calmo e tudo ia bem até que numa onda mais forte ele foi atingido e caiu no mar. Porque ele não colocara o colete, tão teimoso? Tentou salvá-lo. Mas ele era grande apesar de magro. Fez o que pode. Ficou arrasada. Gostava tanto dele. Mas tinha que lutar pra sobreviver também”. Era ele ou ela.


E assim, inventando, venceria as léguas pela areia da praia, anoitecida. Talvez acreditassem nela. E agora já estava mais próxima das luzes que viu quando deu naquele lugar.

sábado, 15 de novembro de 2014

Diário de Araxá (ou como nasceu Domingo)

4 de novembro
Acordo cedo para terminar de arrumar as coisas. Domingo já quer nascer. Ansiedade e medo. Vou com minha parceira de trabalho, mulher que divide comigo inquietações, de vida, amor e arte. Vamos fazer um ensaio do que temos feito em encontros únicos. Embalei fotos, pequenos objetos, um tapete da sala, um espelho. Denise faz o mesmo na casa dela, ajuda em tudo, se desdobra em tantas e tantas funções, sem nenhuma reserva. Saímos por volta das 10h30 de Belo Horizonte. Seis longas horas de viagem, com parada para almoço na beira da estrada. Tive fome, comi como uma caminhoneira. Dia findando quando chegamos.  Encontro carinho e o amigo que nos leva a essa aventura: Juarez.(Sempre grata a você, que nos deu coragem para arriscar...) Estranho um pouco tudo, estranho a cama, durmo mal. Gosto é do dia. Que amanheça!

5 de novembro
Depois do café farto de hotel fomos conhecer a casa. A casa é bonita. Uma das mais antigas da cidade. Vazia. Forte, grande, mas parece aberta à nossa loucura. (Quantas vidas, festas, choros passaram por ela?) Casa que vai se mostrando, vai deixando a gente entrar. Aos poucos, intuição nos guiando, vamos arrumando tudo. Dando vida. O vermelho emerge. Nas toalhas, na boneca da parede, nas almofadas. O sangue emerge. No lado de fora a grama está viçosa, árvores se apresentam. Procuro por terra. Preciso cavar. Encontro um lugar remexido. Ali enterrarei algo precioso. A calma vem. Todos são tão bons conosco. E por hoje é só. Precisa ser devagar. O I Ching aconselha modéstia. Teremos.

6 de novembro
Fico sozinha com ela. Nela. Peço licença. Nova morada. Ensaio em todos os cantos. Experimento. Gosto dessa liberdade. O trabalho me alimenta e cura. Tomara que alimente e cure outras pessoas também. Denise chega e ensaiamos juntas. Choramos no final. Quase sempre. No hotel a piscina aquecida nos acolhe. Água, eu preciso.

7  de novembro
Domingo nasce. Para mim e para os outros. Um dia antes do combinado. Foi bom: receber os olhares, doar as palavras e gestos. Gosto das coisas que tomam vida e nos levam. Domingo é assim. Urgente desde que quis existir. Recebemos tanto em troca: sorrisos, abraços, lágrimas. Tomamos café juntos na cozinha de azulejos azuis. A reação que mais me impressionou foi de uma jovem negra e de olhar muito doce. Pensei que estava falando para mulheres maduras. Mas ela ficou emocionada. Disse palavras tão delicadas. A arte nos salva.

8 de novembro
(Quase não consigo dormir. Ficamos conversando no escuro até tarde. Estava feliz e excitada.)

Preparo-me desde cedo. Fico sozinha. Em silêncio. Passo textos numa área do hotel, numa grama bem verdinha e aparada. Não almoço. Preciso ter fome para atuar. Na casa arrumamos coisas. Faço massa de pão de queijo. (Quase colocamos fogo no forno. Mas tudo fica resolvido a tempo, com os anjos da guarda de Araxá: Marcinha, Wlad, Gigi, Carol...)
Tenho ajuda o tempo todo da Dedê, assim comecei a chamar carinhosamente minha querida Denise, amiga e parceira. Encontro muito feliz. A primeira pessoa em quem pensei quando, do meio do meu desespero, senti que precisava me parir de novo. Ela veio e ficou. Estamos juntas em cena.
Ligo pra minha mãe. Peço sua benção. Falo com as minhas irmãs. Mulheres importantes na minha vida. A chuva começa. Eu começo. Ela para. Eu continuo. Foi um turbilhão. Renasce Domingo.
Na conversa, com café e pães de queijo, refaço a ideia de fazer só para mulheres. Os homens foram tão generosos! E foi bom ouvir cada um, cada uma, na intimidade da cozinha, que já era um pouco nossa. Cada história e semelhança. Dividir, somar.

Agora estou com um vazio de Domingo. Desejo avidamente os que virão.

domingo, 2 de novembro de 2014

o ensaio



e então aquilo que parecia distante de se realizar toma forma.
primeiro os escritos.
depois o trauma.
depois a tentativa de cura.
o teatro me salva.
de mim e do mundo.
injusto.
a vida por vezes é assim.
e nem por isso deve-se lamentar.
a vida é bonita de se viver também.
se com ela navegamos.

depois de um sonho triste começo a ensaiar sozinha.
mas tenho comigo uma parceira, outra mulher.
uma amiga que aceitou dividir comigo essa jornada.
desde o primeiro momento.
e tantas outras mulheres (e homens também).
que se afetam pelo meu olhar e me fazem persistir.

encontros particulares e íntimos moldam o que antes era só impulso.
o cenário é a casa.
não poderia ser outro.
é a terra..
o mato.
a janela.
a cozinha.
o espelho.
o figurino é a roupa.
não poderia ser outro.
o vestido florido.
o vestido de casamento.
a mortalha de luto (que ainda não foi costurada).
os objetos são os que me rodeiam.
não poderiam ser outros.
as garrafas de cerveja que transformo em cacos.
os presentes que enterro.
a mangueira que molha as árvores.
a fala é o que sai de dentro.
não poderia ser outra.
palavras duras e doces.
lembranças boas e amargas.
vislumbres do que está por vir.

na cozinha vou preparar a comida e compartilhar com quem vier.
tragam as bebidas.

Domingo vai nascer.
aos poucos.
por hora é um pedaço que ofereço.

ps: Obrigada, Denise. Gratidão pelo encontro.
      Obrigada, Juarez. Gratidão pelo convite.





sábado, 25 de outubro de 2014

Sem fim

E quando você acha que fecha

De novo se abre a ferida
E sangra como se fosse hoje
E dói como se fosse sempre
E machuca como se fosse nova

E quando você acha que encerra
De novo se faz a página
E fere como se fosse ferro
E confunde como se fosse sonho
E ilude como se fosse mágica.

E quando você acha que acaba
De novo encontra o desejo
E queima como se fosse brasa
E arrepia como se fosse vento
E inunda como se fosse mar.

E quando você acha que sepulta  
De novo se levanta o morto
E assombra como se fosse vivo
E vaga como se fosse sombra
E paira como se fosse nuvem.

E quando você acha que acerta
De novo encontra a dúvida.
E atormenta como se fosse certa
E encara como se fosse nova
E mente como se fosse a única.

Quando você acha que chegou ao fundo
Ainda tem um palmo e meio de terra.

domingo, 19 de outubro de 2014

Noventa dias de tormenta


Foram três meses até chegar ali. Estaria feliz se não fosse náufraga. 

Lembrava-se apenas de ter sido lançada ao oceano no dia 7 de julho de 2014. Não sabia se em sonho ou delírio. De repente se viu no mar, com embarcação frágil, vela tosca e dois remos. Não sabia remar, nem velejar, muito menos entendia porque estava ali. Mas estava. Sem água doce, nem comida. Sozinha com seu medo e sua coragem. Chorava de tristeza, tinha lembranças dispersas, já não sabia de onde vinha. Vinha de um acidente? Não se lembrava de nada. E a nova lida não dava tempo de se perder em reminiscências.

Logo, ainda sem entender de todo a gravidade, com sua dureza capricorniana começou a traçar um plano. Preciso comer, preciso remar, preciso dormir, preciso chegar, preciso viver. Repetia essas palavras como um mantra. Começou a içar a vela, com muito custo, pois era pesada apesar de pequena, nunca teve muita força nos braços. Um bom vento soprava e viu isso como um sinal. Junto remava, desajeitadamente. A ação do vento e de seus braços podiam levá-la longe, pensava. Mas onde? Nem bússola ou qualquer instrumento de navegação. Apenas o sol que se punha, era seu norte. No fim do primeiro dia apagou exausta sobre o pequeno banco de madeira e dormiu, sem ver o céu de lua enorme. Acordou faminta. Procurou nos bolsos das calças, na esperança de encontrar algo. Com alegria descobriu uma bala de hortelã e um resto de biscoito mole, doce, do pavê que fizera uns dias antes. Ah! Sim! Numa festa em sua casa, com amigos, fizera um pavê, daqueles antigos, receita da avó. Agora se lembrara.

Num átimo peixes prateados saltaram pra dentro do barco, ela conseguiu pegar dois. Os japoneses comem peixe cru, lembrou-se. Com um misto de fome e nojo abriu o peixe com as mãos, arrancou as vísceras e comeu a carne, rosada e amarga. Por hoje seria só isso. Mas a sede era imensa. Bebeu água salgada. Enrolou a camisa clara em volta do rosto, para se proteger. Nuvens escuras anunciavam tempestade.  Atou-se ao barco com um cinto de pano, que tinha em volta da blusa. Mas antes procurou algum recipiente para juntar água. Achou uma lata velha, num canto, quase enferrujada.  E desceu as velas.  A chuva veio forte. Ondas varriam o barquinho, que resistia por milagre. Por sorte não durou muito e agora tinha água para beber.

Sabia que ia demorar naquele modo novo de viver. Consolou-se cantando bem alto quando a tarde caía. Assim passaram-se dias e noites e dias e mais noites. Nem sabia quantas. Quando era vencida pelo cansaço dormia exausta, sonhava. Via uma casa amarela, com árvores grandes em volta, via alguém de longe,  não identificava seu rosto. Ele arrumava coisas no quintal. Tinha uma voz mansa e dizia palavras bonitas. Logo o sol forte queimava sua pele e a luta recomeçava.

Nada de terra, nem outros barcos. Apenas aquele mar imenso, chamando para as profundezas. Talvez fosse melhor se deixar ir, como uma sereia torta e cansada, para dentro dele. Seu peito doía tanto. Era só um buraco, uma falta e um desconhecimento de tudo. Em toda sua vida nunca tinha sentido isso. Vai passar, vai passar. Mas não. Era grande e funda aquela nova sensação. O que fazia ali? Tentava se agarrar em alguma imagem, não queria ceder assim. Um vento forte encrespou o mar e uma onda partiu o mastro que caiu quase sobre ela. Sem vela, tudo ia ficar mais difícil. A cada golpe, sentia que precisava reagir. Sua garganta tinha desejos de dizer coisas. E vociferava contra tudo e todos. Quem? Depois remou com energia, sem rumo, mas avançou. Buscava terra, mas terra perto não havia.

Aprendeu a pegar peixes com uma ponta da madeira do mastro que se partira. E outras chuvas garantiram água, colhida na lata e sorvida com parcimônia. Quase se acostumara àquilo. E as noites eram esplêndidas. A natureza oprimia de tão bela. Soberana. Mais calma rezava e pedia proteção. E agradecia por estar ali, apesar de tudo. Ficava de olhos abertos deixando o vento e o acaso levar a embarcação. Dormia pouco com medo de algum peixe grande ou onda que virasse o barco. Mas sonhava. Eram sonhos confusos, com tantas imagens e rostos que mal reconhecia. Via crianças, três. Seus filhos? Via um teatro grande, luzes apagadas. Via um casal sorridente, seus pais? Um vestido branco secando ao sol. Uma senhora velhinha que a abraçava.

Depois de um longo tempo à deriva adoeceu. Teve febres e calafrios.  Dores fortes nos rins, que subia pelas costas, enjôos.  Enrolou-se no tecido grosso da vela. Desistisse? Não. Vou reagir, vou reagir. Preciso viver, preciso remar, preciso... Nem sabia mais do que precisava. Nada mais importava. E dormiu um sono profundo. Viu sua imagem como em filme. Irmã mais velha de cinco irmãos, pais poetas, infância no interior. Casou-se cedo, com um homem bom, teve três filhos, dois meninos e uma menina. Construiu casa. Fez-se artista. Era melancólica. Gostava de sol. Um dia foi morar noutra casa, sozinha. Morou em terras distantes, equatoriais. Lembrou-se de tanta luta, tanta angústia, da solidão, da esperança. Do encontro: amor-oceano. Perigoso e profundo. A casa, o mar, o banho de mangueira, a cachoeira, as promessas, o café da manhã, tapioca, cuscuz, cerveja, lua, casa, janela, cama, café, beijo, sono, corpo, música, viagem. Dúvida, medo.  Lembrou-se de cada palavra e gesto. Lembrou-se do fim. Explosão, choro, lágrima, raiva, dor, tristeza. Naufrágio. Agora entendia porque estava ali.

Acordou com um tranco forte no fundo do barco. Pensou no pior. Era um banco de areia. Desceu, trôpega. Em alguns passos, pés dentro d’água morna, estava em terra firme. Olhou mais uma vez o barco, exausto, exausta,  tão machucado quanto ela. Sentou-se na areia, chorando pegou conchas e sorriu para uma pequena estrela do mar. Sobrevivera. Longe dali avistou luzes. Vou descansar um pouco, pensou. Depois iniciaria nova etapa. 





domingo, 12 de outubro de 2014

Fragmentos de um diário (2)


E se passaram 6 anos. Reflexos perduram. As dores nos fazem olhar para trás. Repenso meus passos e desejo novos caminhos.

2008

29 de setembro, segunda

Como eu estava bonita nas fotos dos jornais antigos, quando eu era atriz, e como agora eu me sentia envelhecida, meu corpo tinha se deformado muito, relaxei demais nestes dois anos, as pernas feias, cheias de vazinhos arrebentados e muita celulite, tendência que sempre tive, desde nova.
E o pior: já não tinha mais a ilusão de fazer aqueles regimes malucos e ficar em forma. Nunca tinha sido gorda de verdade, mas sempre quis perder peso. A tendência era cada vez engordar mais e em menos tempo. Assim chegara aos 82 quilos.


8 de outubro, quarta-feira
Fiquei 3 dias sem pensar no diário.
Só escrevo quando preciso, como um remédio.
Fico pensando na minha solidão, que estou começando a gostar, mas hoje voltei a chorar no ônibus, por causa da música do Lulu Santos:

E a gente vai a luta
e conhece a dor
considerando justa
toda forma de amor.


8 de novembro, sábado
Parei de escrever por muitos dias, achei que nem voltaria mais a fazer isso.
Mas hoje, sábado baixou uma tristeza, solidão, medo, terríveis.
Acho que escrever vai me deixar melhor.
Aluguei o apartamento na ilusão de que ele ia ficar cheio de gente sempre, meus filhos, amigos, irmãos. Mas quase ninguém vem.
A solidão é grande aqui. Fico no escuro, não gosto de acender luzes.
Às vezes é boa, outras muito dolorosa. Ficar com a gente é difícil.
Um passarinho, passarinha, fez ninho na janela do banheiro. Foi a surpresa que me recebeu na volta de Rio Branco.
Ela choca os ovinhos, parece que um já nasceu, mas não consigo ver porque a janela tem um vidro opaco e ela se assusta quando subo no banquinho. É um pássaro marrom grande, sabiá? É um alento.

Domingo, 21 de dezembro
Alguém, por favor, podia (des)inventar o domingo? Detesto. Domingo, agora então sem família, só presta até a hora de começar a pensar no almoço. Depois é só tristeza e lembrança. Só fugindo para outro lugar...


domingo, 5 de outubro de 2014

Fragmentos de um diário (1)

Revejo/recorto partes de um diário de 6 anos atrás. De alguma forma muitos dos sentimentos se refletem aqui, como um espelho de cacos, que embaralha as memórias e sensações. A escrita cura. Divido para que outros possam talvez se curar.

2008
12 de setembro, sexta
Mudei-me para um apartamento em um conjunto habitacional na periferia. São muitas ruas, muitos blocos, muitas unidades, muitas pessoas, umas cinco mil. Dois quartos quadrados, sala pequena com ganchos para rede, cozinha e área de serviço juntas, com janela pequena, banheiro razoável. Tem armários em todos os lugares, está todo pintado de branco, as portas com um amarelo envelhecido, feio. Minha pequena prisão domiciliar.

13 de setembro, sábado.
A noite foi dura. Acordei assustada, com medo de tudo.  Minha asma, herança de vovó Páscoa voltou. Mudei-me com pouco menos do que o necessário e apesar dos conselhos de todos, que acharam a idéia absurda: uma cama box, comprada às pressas com a última parcela do seguro desemprego das aulas na faculdade, uma mesa emprestada, um banquinho que vai durar pouco. Minha nora me ajudou a trazer os trecos no seu fusca: roupas, sapatos, papéis, um vaporizador, um edredon velho, um vaso de violeta. Fogão e geladeira chegariam mais tarde, comprados com ajuda de mamãe. O que eu não preciso pra viver, o que eu preciso pra viver...


16 de setembro, terça
Remexer em fotos, papéis, vidros de perfume que colecionava me fez mal. Queria colocar tudo dentro de um saco, como aqueles que embrulham os cadáveres das guerras e só olhar depois que a dor passasse.
À noite, indo para o trabalho, fiquei olhando meu rosto na janela do ônibus: os óculos novos me lembravam o tempo da faculdade, mas a cara tinha marcas, as rugas na testa herdadas da vovó, o bigode chinês, os cabelos brancos que decidi não pintar, o aspecto cansado. Em quem eu tinha me transformado?

19 de setembro, sexta

Queria fazer um adesivo:
Estou me separando, não me pergunte como. Nem por que.”

21 de setembro, domingo.
Devia ser proibido trabalhar aos domingos, é dia sagrado. Mas nós artistas, engajados, sociais, conscientes e não sei mais o quê, sempre arrumamos sarna pra coçar. Fui. Saí perto do meio dia depois de comer um pedaço de pizza requentado da noite anterior. Comer sozinha é estranho. Sempre estive cercada de muitas pessoas: pais, tios, avós, primos, irmãos, filhos, amigos e o povo do teatro. Sempre andei em bandos, fui líder deles, cozinhei pra muitos, servi. E agora não tenho um gato pra compartilhar a comida. Atravessei a cidade, encontrei outro bando, falei, discuti, opinei, me senti em casa.
Mas no caminho chorei no ônibus. É só a paisagem começar a se movimentar da janelinha que ele vem. Se ao menos tivesse um lenço como meu pai tinha. Os lenços saíram de moda, o que é uma pena, serviam pra tantas coisas: limpar um banco, assoar o nariz, enxugar as lágrimas. Observo muitas pessoas chorando disfarçado na rua. E nenhuma tem um lenço, pequeno que seja, pra ajudar.


domingo, 28 de setembro de 2014

O corpo

Muita pequena abri uma mala antiga e tive a primeira crise de asma, herança da avô materna, chamada Páscoa. Desde então de tempos em tempos, quando os pulmões dão sinais de tristeza chiam. Parece que tem um gato, meu preferido entre animais, dentro do peito. Com uns três anos, via a chuva colada na janela, na casa dos avós no interior e uma pedra de granizo quebrou o vidro e cortou meu nariz. Ganhei uma pequena cicatriz, que hoje mal se vê. Lembro-me também de furúnculos, que me acometiam desde pequena. A pele vermelha e intumescida, pequeno vulcão de onde saiam secreções. Dentro, bem no centro, uma carne dura, que mamãe chamava de carnegão. Enquanto não era expulso, a custo de muita pressão, a ferida não fechava. Lembro-me também de dores constantes de garganta e de uma hepatite que me deixou 40 dias de cama. Até hoje sou fraca para beber, creio que o fígado ficou sensível demais. As provas finais do grupo escolar quase sempre fazia separado, talvez por nervoso ficava doente com a proximidade delas, apesar de ser boa aluna.
Cresci rápido. Com 13 anos já tinha a altura de hoje. Fiquei moça cedo, grandona, penúltima da fila na escola. Carregava bandeira na parada de 7 de setembro. Corpo parecido com o da minha mãe, mas seus pés são bonitos. Os meus não. Grosseiros e  grandes, pés que se afundam no chão, enraizados demais.
Sempre quis ser mais magra do que era. Minhas formas tendem ao redondo, ancas grandes. Nunca achei meu corpo bonito. Sempre briguei com ele. (Fui aprender a gostar mais de mim, por fora, muito tarde, quando alguém devolveu vida ao meu corpo cansado. Fiquei leve e linda, suave nas formas e sem vergonha nenhuma dos pequenos defeitos.).
Sempre fiz regimes malucos e muitos exercícios. Enjoava de tudo fácil. Até hoje sou assim. Só consigo fazer as coisas por uma necessidade, de dentro pra fora.  T’ai chi, hidroginástica, body balance, musculação, corrida, caminhada. O que mais gostei foi do trabalho sutil da bela Irene, cujos exercícios delicados nos fazem mudar a postura e a alma. Depois as emoções nos desorganizam. E tudo precisa recomeçar.
Antes dos trinta vieram os desejados filhos. Corpo que se expandia. Ficar grávida era um estado de plenitude e força gigante, usina de gerar. Fui feliz com aquele corpo que acolhia, quente e macio. Depois o leite sugado do peito enxugava o corpo, enquanto alimentava aquele amor sem medidas, amor-perfeito. Ficava seca, enquanto os garotos cresciam fortes. Era bom. 
À noite, deitada na cama, sentia meu corpo imenso. Como se fosse a Bárbara do Murilo Rubião. Depois uma mulher me disse que o que sentia era a percepção do períspirito. Corpo sutil em volta do outro, de carne. Mistérios que desconhecemos. Só depois, aos poucos, entendi o corpo nosso, mulher de cada dia, que abriga os menstruos, corpo aquoso, inchando e desinchando, como os ciclos lunares. O sangue espesso todo mês, as cólicas agudas. Somos, de corpo, feitas para parir.
Depois da filha, terceiro parto, veio a laqueadura das trompas, corte no umbigo. Hoje penso que foi uma pequena violência, dessas que cometemos contra ele, nosso corpo. Mas na época pareceu ser o certo.
Aos 48 começaram a secar as regras. Os ovários murcharam. Depois o sangue cessou. E veio outro ciclo. Parecia morte, mas foi vida nova. E mais livre.
Meus cabelos já foram longos, há muito tempo. Foram curtos quase sempre, como Diadorim. Hoje tentam crescer, resgato uma mulher vaidosa nos cachos. Deixo-os brancos, mechas. Quero que me respeitem por ser vivida.
Recentemente ganhei nova cicatriz na face direita. Carcinoma bacelar infiltrativo. Duas vezes retirado e ainda aponta margens exíguas, diz o laudo. Tanto sol tomado, nem me arrependo. Sempre precisei de sol. E mar.
Nos últimos meses emagreci, mas foi de emoção, do excesso ou da falta dela. Mesmo assim achei vantagem. As mulheres são loucas.


Em frente ao espelho me vejo de novo, corpo inteiro. Gosto dele, mesmo não sendo perfeito. Ele é grande, forte e me contêm. Espelho de mim: corpo-alma.

domingo, 14 de setembro de 2014

O amor do meio

Tirando as paixões juvenis que deixaram marcas profundas por serem as primeiras, a mulher vivera até hoje dois grandes amores. Em tudo diversos.

O primeiro chegou depois de relações incompletas, instáveis. Gostava das coisas bem claras. (Sua frase preferida era “não foi isso que a gente combinou...”). Queria desde cedo alguém pra dividir a vida, ter filhos, construir casa, trabalhar. E quando encontrou essa pessoa a entrega foi imediata. O namoro durou poucos meses e já estavam juntos. Lembra até hoje do seu vestido curto de noiva, sem grinalda e da escadaria imensa ao sair da Igreja pequena. E dos bombons de uva com doce de leite, que levaram para a lua de mel. A paixão em pouco tempo virou amor. Logo eram duas cabras montanhesas, subindo aquela cadeia de montanhas, fortes e serenos, duros como as rochas da escalada. Em muitos momentos admiraram a vista, respiraram e prosseguiram. “Horinhas de descuido”, de verde e água, de namoro e renovação dos votos. Acontece que muitas vezes com a cabeça baixa, não viram quando começaram a trilhar caminhos diferentes, naquela lida que exigia suor e paciência. No fim de uma tarde qualquer constataram que a distância aumentara e era impossível retornar. Cada um agora devia seguir sozinho. Mas da montanha vizinha um avistava o outro e pensava:  ele está lá. Foi um amor longo, duradouro e sólido como aquelas paredes de pedra. Deu filhos e frutos. Permaneceu um carinho profundo e uma promessa de que quando ficarem velhinhos podem viver juntos novamente.

O segundo chegou no silêncio. Na solidão de um pequeno apartamento, curtido pela tristeza e desesperança. Arrebatou com sua poesia, era o desconhecido. Contra todas as convenções. Uma paixão adolescente na madureza, risco corrido com gosto e um pouco de medo. Leve, fluido e ainda assim ardia como o fogo. Logo eram dois pássaros furando as nuvens róseas, planando sobre o mundo do pequeno cotidiano, lá embaixo. Foram também peixes, mergulhando em cachoeiras doces e mares salgados. Foram flores e estrelas. Metáforas infinitas. Celebração da vida em gestos, imagens, palavras. A paixão virou amor, se estendeu em tempo e espaço e também ergueu casa.  A casa amarela de grades azuis. Naquele santuário o amor fez promessas de eternidade e de ser sempre leal.  E veio uma paz. Nada podia contra aquele sentimento. Nada. Assim pensava(m). Esquecendo a natureza das coisas da natureza. Fogo, vento e água não se domam. Um dia, sem aviso, escorreu, voou, queimou. E assim como veio se foi. Permaneceu o silêncio, nenhuma promessa. 

Na terra desolada a pássara ferida voltou para o ninho e buscou abrigo entre os seus.

O terceiro será firme como a montanha, mas deixa passar o vento, abriga a água e sustenta  o fogo.

Quero agora um amor do meio. 

domingo, 7 de setembro de 2014

A força

Então aos dois meses sobreveio-lhe a força. Acordou tarde, nem ouviu o celular e aquele toque chato, estava com uma fome imensa. Preparou café forte, frutas com mel e granola, ovos mexidos, pão torrado. De todas as coisas que fazia sozinha comer era o mais difícil, mas o café da manhã sempre fora sua refeição favorita. Gostava de inventar mil coisas e agradar quem estava por perto. Não tinha a menor preguiça de colocar a mesa, com tudo bem arrumado, xícaras, pratinhos, colheres, garfos. Hoje era tudo isso só para seu deleite. E fez com gosto, sem se lamentar. Comeu devagar, apreciando cada pequena porção e tomou muito café. Claro, as imagens vieram. Tinham uma névoa em volta e machucavam menos. (Comida na boca. Fingir que não queria e depois aceitar. Risos. Beijo. Risos.) Já satisfeita levantou-se e foi para o lado de fora. Varreu todas as favas que se espalhavam pelo passeio em frente à casa. Pegou o cesto de roupa, separou as brancas das escuras, encheu dois tanques e o resto bateu na máquina de lavar. Tirou os móveis e o tapete da sala, começou a varrer toda a casa. Depois lavou os dois banheiros, olhando pras pastilhas coloridas entremeadas aos azulejos claros. Pegou um balde e passou pano molhado nos quartos e na sala. Duas vezes porque estava muito sujo. A cozinha lavou com mangueira, evitando molhar a sala. Tirou poeira dos móveis e dos pequenos objetos, como aquele casal típico holandês, de porcelana branca e azul que se beijava. A caixinha de música. As cuias desenhadas de tomar tacacá. Limpou bem os espelhos e evitou conversar com eles. (Mas viu seu rosto e suas novas rugas e suas olheiras). Pendurou toda a roupa no varal. Voltou com cada coisa para o seu  lugar, acendeu um incenso  e sentou-se um pouco. Estava exausta. A casa limpa limpava a alma e os maus pensamentos. Descansou exatos 15 minutos e ligou o notebook. Concluiu  2 projetos, respondeu 14 emails, olhou seu facebook, organizou pastas, ligou para 7 pessoas, ligou para sua mãe, falou com sua filha, falou com seu filho, mandou mensagem para o filho mais velho. Tomou banho. Fez um suco de couve com abacaxi e laranja. Seu almoço. Foi à rua, foi à gráfica, foi ao correio, foi à padaria. Voltou para casa. Tomou café com a filha. Pegou as roupas do varal, dobrou tudo com paciência, assim ficava melhor na hora de passar. Viu TV, um documentário sobre o samba, viu propaganda eleitoral, resolveram tomar aquela garrafa de vinho. Fumou, dividindo o cigarro com a filha na janela. Falaram da vida. Falaram dos acontecimentos. A filha dava sempre sábios conselhos. Consolava a mãe. Depois saiu, linda. Já era uma mulher. Olhou a lua. Ventava tanto no quintal. Amanhã vou dar um jeito nessa arvorezinha antes que ela se quebre, pensou.  Daí veio o ataque. Era a terceira vez na semana. Mil pássaros dentro do seu peito, batendo asas sem parar. Querendo sair. Choro convulsivo. Pensamentos disformes. Medo.  Vai passar, vai passar, do meio do caos ela se dizia. E se ninava como um bebê, as mãos em volta do corpo. Durou uns dois minutos. Respirou. Não devia ter bebido. O arsenicum receitado pela terapeuta reiki já era forte demais. Acendeu uma guimba que ficara na janela, olhando o telefone em cima da cama. Pegou o aparelho e acessou um perfil. Hesitava. Você disse que não ia fazer isso. Última vez. Juro. Não. Sim. Escreveu palavras soltas, pequena mensagem. Enviou. Isso trouxe um alívio. Mesmo que momentâneo. Ficou um tempo imóvel olhando ainda a tela colorida. Estava mais calma, sem cor nas faces cansadas. No banheiro escovou os dentes. Arrumou a cama, deitou e dormiu.  Esperando uma resposta.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

o ensaio

...então depois de quase consumir-se em outra noite de insônia ela decidiu. “Amanhã cedo vou começar a ensaiar”. Sim, faria isso. Sua arte tinha que servir pra ela mesma. Agora seria egoísta, egocêntrica e narcisista. Falaria só de si e que se foda o mundo. A ideia endureceu até que se levantou da cama. Buscou na geladeira aquele resto de bolo de chocolate com mousse de maracujá, da festa familiar do domingo, serviu-se uma dose de Domecq que comprara com a filha para o inverno, pegou o maço vermelho de Coyote com o último cigarro de palha e começou a digitar freneticamente. Precisava agora de todos os prazeres, para suprir a falta que o amor exagerado lhe fazia. Ah...amanhã começaria do ritual de enterrar e desenterrar coisas na terra do quintal. E daria voltas na casa correndo com um vestido que se arrastaria pelo chão. Mas antes pensou em se aquecer, saudar o sol como vinha fazendo e relembrar alguns movimentos do Tai’chi. Conversas com o espelho já eram comuns, mas amanhã seria de verdade, sem teatro. (o bolo de chocolate curtido em três noites estava ótimo junto com o conhaque...) Sim, começaria do lado de fora com seus rituais. Eram rituais de cura, mas não sabia exatamente de quê. Não queria falar só de (des)amor e solidão. Queria mais, queria curar-se e, curando-se de si mesma, ajudaria outras mulheres. Sim o seu “espetáculo”, seria apenas para mulheres. Elas que são a dor do mundo. Sim, “tudo no mundo começou com um sim” e pensava em clarice e nela mesma, que teria que fazer da arte o seu antídoto. A ideia espantou os demônios que vinham sempre fazer-lhe visitas à noite.  Deixou-a excitada e quase feliz. A aventura ia começar. Sim. Daria a si mesma o luxo de errar. Sim. Deixaria seus cabelos crescerem. Sim. Faria uma tatuagem nas costas. Sim. Sim. Sim.
Voltou para cama e dormiu, desejando que o dia rompesse e, com ele, sua liberdade.


domingo, 24 de agosto de 2014

A calma

Então ao quadragésimo terceiro dia sobreveio-lhe uma calma. Foi depois do chá de hortelã e de dar boa noite a sua filha. Vinha de um dia cheio e de uma noite de ensaio. Nem sabia mais o que era dormir mais de cinco horas de sono. Seus olhos estavam fundos. Emagrecera uns três quilos, o que, afinal, deixava-a meio alegrinha. Queria ser magra. Então, enquanto arrastava sua falta de esperança pela casa, esquentando a água no caneco, e olhando a pia desarrumada, sentiu uma mudança. Tempestade que cessa assim como veio. Sem aviso. Sorriu um pouco, com medo de estar sendo ingênua de novo. Não. Era diferente. Sentou-se na cadeira e apagou as luzes, queria aproveitar intensamente aquele momento.  A luminosidade da rua atravessava as tantas janelas e a porta, de postigo, que compraram juntos, depois de tanta procura. Acendeu um cigarro de palha, vício ao que voltara até se sentir melhor, e fumou, sorvendo longas tragadas. De dentro via o quintal que se iluminava tanto pela noite estrelada e limpa, quanto pelo pequeno refletor que se acendia quando passavam em frente à casa, no passeio. "Assim você fica mais segura". Sempre preocupado com seu bem estar, com sua vida. Cercando-a de tantos cuidados que a deixavam mimada e feliz como uma adolescente. Mas na hora não pensou nisso. De certo modo meditava, porque conseguia não pensar em nada, apenas observava as coisas. O gato branco se movendo lento lá fora. O balcão bonito de madeira de lei da cozinha, os azulejos em mosaico, as plantas que se abriam em flor, a orquídea com três novos brotos, prometendo beleza. Os recortes das grades projetavam-se nos vidros e dos vidros vinham dar dentro de casa, no chão de cimento queimado. As poltronas oferecendo aconchego. O telhado espiando do alto para ela. Tudo quietava. Era um silêncio que começava dentro dela e pedia mais silêncio e mais calma. Como um turbilhão ao contrário, que vai perdendo força, até terminar. Aproveitou daquela sensação nova e alentadora. Pronto? Acabou então? Podia ter uma vida de volta? Era cedo pra dizer. Levantou-se para ir à cozinha, encheu um copo d’água no escuro, foi para o seu quarto. A cama já estava arrumada, com muitas cobertas e dois travesseiros. Parecia macia e quente. Deitou-se, rezou um pouco. Agradeceu e dormiu. Profundamente. A partir de agora seria assim: uma noite de cada vez.

domingo, 17 de agosto de 2014

Rituais

Rituais

17 de agosto. Data escolhida para o ritual. Um mês depois do encontro na praça, choro, canções e últimos beijos. Quando sentiu que o fim seria inevitável pensou que isso ajudaria  a evitar um pouco a  dor. Um tributo àquele espaço-tempo fora desse mundo, imantado por beleza e palavras grávidas de amor. Ideia inspirada em Marina e Ullay e o belo encontro na muralha da China. O abraço e o adeus.
Cada um sairia de um ponto equidistante entre suas casas. Até chegar naquele lugar, até chegar na natureza. Água, sol e árvores. O mar seria benvindo, mas impossível. Carregariam dentro. Cada um deveria preparar um presente para o outro. A caminhada seria feita a pé e descalça. Então, no momento em que se encontrassem, se abraçariam em silêncio, trocariam os presentes e se despediriam. Até nunca mais.
Acordou cedo. Não tomou café.  Começou a se preparar devagar. Tomou banho, perfumou-se com alfazema que ele gostava tanto. Vestiu o vestido rosa de renda antiga que havia costurado todo à mão. Fez cachos nos cabelos. Passou delineador, puxando um pouco a lateral, ele também gostava disso quando se conheceram. Passou um batom bem suave, enquanto pensava que não haveria beijo.
Foi ao quintal, fez movimentos do Tai’chi. Rezou uma reza. Pediu proteção, força, sabedoria e todas essas coisas que a gente pede quando não sabe o que pedir. Estava quase na hora. Alegrou-se pensando no presente que prepararia. Gostou de imaginar a cara dele abrindo o pote e sentindo o cheiro. Apesar da tristeza estava feliz. Todas as etapas do ritual iam acontecendo, calmas.
Entrando em casa viu aquela rosa no jarro verde, delicado. Ela estava ali há uma semana. Presente para “a mulher mais bonita do mundo”. Chegou murcha, querendo água. Em casa se abriu, rosa. Ainda estava viçosa, mas em poucas horas começaria a secar. Tirou a rosa do vaso. Abriu brusca a porta. Andou descalça pela terra falando coisas estranhas. Despetalou a rosa esfregando-a em seu rosto e depois corpo, os olhos semicerrados. Depois esfarelou o pistilo e pensou se daquelas sementes nasceriam roseiras. Num ímpeto correu em volta da casa e entrou. Já sabia qual seria o próximo passo. Abriu a gaveta do meio e achou no meio das roupas a imagem do paraíso. Em frente à cachoeira os dois desafiam o mundo com meio sorriso. Fechou os olhos e rasgou pacientemente a foto, pelo lado do avesso. Depois colocou num pote pequeno de louça e queimou sobre o cimento, do lado de fora. Espalhou as cinzas pela terra onde faria uma horta, um dia. Já sabia qual seria o próximo passo. Fez um café bem forte. Da geladeira tirou o pote que continha goma de fazer tapioca. Separou uma pequena quantia. Esfarelou com a ponta dos dedos até desfazer os grumos. Esquentou a frigideira, espalhou a massa, esperou tomar forma, virou. Partiu um pedaço de queijo minas colocou por cima, dobrou a tapioca e colocou no prato de bordas azuis. Comeu de olhos fechados, como seu pai gostava de comer. Tomou café, olhando para porta de vidros translúcidos. Lá fora não havia sol. Estava frio e nublado. O seu ritual já havia acontecido.

E já sabia qual seria o próximo passo.

sábado, 9 de agosto de 2014

Dos vícios e virtudes

“A mulher que bebe”. Já fui identificada assim, certa vez, num bar distante. Virou uma pequena alcunha, embora não de todo verdadeira.  Sempre fui fraca para bebidas, embora goste delas. Menos dos destilados, mas nesse frio um conhaque me faz companhia nas noites, dose suficiente pra esquentar o peito, ou quase. “É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem tréguas. Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.” dizia Baudelaire. Ou como diria a minha sábia cunhada Martinha: “Uma mulher que bebe é uma mulher muito mais feliz...”
Talvez sejam os defeitos que nos permitam a embriaguez.
Pensando nisso saio pela rua, vou ao bar e compro duas cervejas comuns. Pretendo tomar garrafa e meia, amanhã tenho trabalho cedo.  Beber sozinha é uma liberdade conquistada. Lembro-me da primeira vez que vi uma amiga fazendo isso. Surpresa,  imitei o ato e desde então o pratico regularmente. Nem sempre é bom, mas sempre é uma pequena conquista. Beber sozinha é um teste de convivência. Ninguém para dividir suas alegrias e mágoas. As verdades sendo ditas suavemente ao seu ouvido.
Fumar já é um hábito que vai e vem controladamente. Desde cedo. Longos períodos de abstinência porque assim reza a cartilha de uma vida saudável. Mas como uma pessoa que, machucada, usa muletas, recorro a ele sempre que preciso. Como agora. A fumaça que arde por dentro também consola. Depois demoro a me livrar dele, mas quando me sinto mais forte é possível. Foi assim de outras vezes.
Outros vícios não tenho. A não ser que consideremos vícios o amor e a escrita. Que muitas vezes se confundem. Esses são perigosos. “O amor é uma droga pesada”, dizia a poeta Ana Cristina César.  E se matou de tanto amor, ou por falta dele. Sua abstinência provoca delírios, tremores, insônia. Sua overdose também. A sensação embriagante obriga os viciados a desconhecerem a razão e a agir como loucos. Quando felizes, no auge da paixão, vivem flutuantes, por cima do mesquinho cotidiano. Quando tristes, no auge do abandono, mal conseguem realizar as tarefas comuns. Vivem sempre fora do mundo, pobres amantes. Desses vícios tenho muito medo, sou ainda iniciante no assunto. Devo confessar que tenho experimentado ambos, curiosa. Mas aprendi: qualquer descuido pode ser fatal.

P.S: A beleza da lua lá fora quase anula a necessidade desse texto. De qualquer texto. Olhar a lua seria também um vício?

domingo, 3 de agosto de 2014

Amigas



Duas mulheres frequentam minha casa. Dona Tristeza e Dona Alegria.
Dona Alegria entra sem bater, quase invade o lugar, mexe em tudo, gosta de beber e ultimamente até de fumar. Fala sem parar e numa altura de mamma italiana, ri desbragadamente e faz piada de tudo. Seus olhos brilham e gosta de mostrar os dentes num sorriso sem fim. Tem pudor nenhum de falar montes de palavrão, todos cabeludos, que vieram do tempo que andou pelo Acre. Gosta de decotes e de se pintar no espelho. É uma mulher exuberante, de seios fartos e sempre descabelada. Louca por água e sol. Muitas vezes vem vestida de Euforia e aí ninguém segura essa mulher. Tem um apetite insaciável e me ajuda a criar pratos fartos e a comer sem culpa. Muda de assunto todo o tempo, emendando uma história na outra e encontra motivos para se divertir até com a desgraça alheia. Não sem antes rir de suas próprias. Como veio vai embora sem avisar, deixando a porta aberta e roupas jogadas pelo chão.
Dona Tristeza gosta de vir à noite e parece ter o poder de passar por baixo da porta. Quando percebo já está sentada na cadeira do quarto, à espreita. Velando pelo meu sono. Seus olhos fundos não me perguntam nada. Seu nome é silêncio. Remói lembranças, procura nas gavetas por fotos antigas e pequenos objetos, faz questão de me mostrar. Fujo dela me escondendo no banheiro. Quando saio do banho ela me estende a toalha. Muitas vezes tem um meio sorriso no rosto, como se me culpasse por ter ficado em intimidades excessivas com Dona Alegria. Nem preciso dizer que não se bicam. Quando vem vestida de Melancolia gosta de me convidar pra uma taça de vinho, que sorvemos como um doce veneno. Depois fica com o olhar perdido, imóvel, ou cobre o rosto com as duas mãos, perplexa. É uma figura bonita, discreta, cabelos presos num coque e brincos de pérola. Magra, se esquiva por todos os vãos e surpreende com aparições que me aguçam de súbito o choro. Quando consegue isso passa seus dedos finos em meus cabelos e me consola. Seu abraço provoca arrepios no meu corpo, dizem que ela tem uma prima que...

Nunca vem juntas. Alegria adora um sábado, gosta do dia e sua luz. Tristeza ama os domingos e a noite ganha intensidade. Às vezes trocam horários e me confundem. A presença delas tem sido constante nesse inverno que se alonga. Não consigo eleger uma como melhor amiga. Pode parecer estranho, mas preciso das duas.

domingo, 27 de julho de 2014

Comigo

Experimento novamente a solidão.
Não é definitiva, mas profunda. Solidão parcial na ausência da filha, amiga e confidente agora. Ah! as mulheres e suas vidas. As mulheres e seus segredos.
Descobri muito tarde o valor de ficar sozinha.
Aos 48 anos fui morar em pequeno apartamento.
Vivi por quase dois anos ali. Sem tv, poucos amigos, família meio distante, todos doloridos com a separação. Aprendi muitas coisas no escuro, evitava acender luzes, muitas vezes deixava apenas os fachos dos postes do conjunto habitacional entrarem. Foram dias de muita dor e mudanças enormes. Não previstas, como imprevista é a vida.
Entender o próprio ritmo assusta um pouco. A solidão assusta porque é amiga da liberdade. Mas às vezes não sabemos o que fazer com ela. De dia muitos pássaros e o verde de tantas árvores, do conjunto habitacional, me enchiam de novo de esperança e eu seguia. 
(Um dia a vida me presenteou e vivi numa nuvem/quarto cor de rosa por um sem tempo. Depois veio a filha e com os filhos a casa vira novamente um lar. Tive vontade de receber amigos e festejar um pouco.)
Agora é diferente. Já conheço a sensação. Gosto. Um pouco de vazio, um pouco de silêncio. Um pouco de tristeza. Ouvir as vontades, respeitar o seu tempo. Esse aprendizado continua. Demorei muito para saber exatamente o que eu queria. Nas coisas simples, domésticas. E nas outras. Poder inventar uma rotina de acordo apenas com você e suas escolhas, tarefa que exige uma paciente coragem.
Descobri que gosto mais do dia que da noite, descobri que não gosto de almoçar cedo, descobri que posso dizer não. Descobri que posso ser boa companhia. (Ainda não descobri um jeito melhor com as plantas, mas vai acontecer.)
Quando sinto necessidade de falar, pois estar só é ficar calada, falo comigo mesma no espelho velho do lavabo. A que está do outro lado é mais firme que eu, coloca questões, cobra, dá broncas quando precisa. Eu ouço e rio de mim mesma. De nós mesmas. Sim, a solidão permite rir da vida, sonoras gargalhadas. E chorar, sempre. Por que gosto de chorar, preciso.
Nessa casa a solidão é mais bonita, porque a casa foi pensada e feita com tanto amor, que seu colo me preenche quando estou sozinha.

A solidão é meu exercício para estar no mundo. Para fazer arte. Para amar novamente.