...então depois de quase consumir-se em outra noite de insônia ela
decidiu. “Amanhã cedo vou começar a ensaiar”. Sim, faria isso. Sua arte tinha
que servir pra ela mesma. Agora seria egoísta, egocêntrica e narcisista.
Falaria só de si e que se foda o mundo. A ideia endureceu até que se levantou
da cama. Buscou na geladeira aquele resto de bolo de chocolate com mousse de
maracujá, da festa familiar do domingo, serviu-se uma dose de Domecq que
comprara com a filha para o inverno, pegou o maço vermelho de Coyote com o
último cigarro de palha e começou a digitar freneticamente. Precisava agora de
todos os prazeres, para suprir a falta que o amor exagerado lhe fazia.
Ah...amanhã começaria do ritual de enterrar e desenterrar coisas na terra do
quintal. E daria voltas na casa correndo com um vestido que se arrastaria pelo
chão. Mas antes pensou em se aquecer, saudar o sol como vinha fazendo e
relembrar alguns movimentos do Tai’chi. Conversas com o espelho já eram comuns,
mas amanhã seria de verdade, sem teatro. (o bolo de chocolate curtido em três
noites estava ótimo junto com o conhaque...) Sim, começaria do lado de fora com
seus rituais. Eram rituais de cura, mas não sabia exatamente de quê. Não queria
falar só de (des)amor e solidão. Queria mais, queria curar-se e, curando-se de
si mesma, ajudaria outras mulheres. Sim o seu “espetáculo”, seria apenas para
mulheres. Elas que são a dor do mundo. Sim, “tudo no mundo começou com um sim”
e pensava em clarice e nela mesma, que teria que fazer da arte o seu antídoto.
A ideia espantou os demônios que vinham sempre fazer-lhe visitas à noite.
Deixou-a excitada e quase feliz. A aventura ia começar. Sim. Daria a si
mesma o luxo de errar. Sim. Deixaria seus cabelos crescerem. Sim. Faria uma
tatuagem nas costas. Sim. Sim. Sim.
Voltou para cama e dormiu, desejando que o dia rompesse e, com ele, sua
liberdade.