Então aos dois meses sobreveio-lhe a força.
Acordou tarde, nem ouviu o celular e aquele toque chato, estava com uma fome
imensa. Preparou café forte, frutas com mel e granola, ovos mexidos, pão
torrado. De todas as coisas que fazia sozinha comer era o mais difícil, mas o
café da manhã sempre fora sua refeição favorita. Gostava de inventar mil coisas
e agradar quem estava por perto. Não tinha a menor preguiça de colocar a mesa,
com tudo bem arrumado, xícaras, pratinhos, colheres, garfos. Hoje era tudo isso
só para seu deleite. E fez com gosto, sem se lamentar. Comeu devagar,
apreciando cada pequena porção e tomou muito café. Claro, as imagens vieram.
Tinham uma névoa em volta e machucavam menos. (Comida na boca. Fingir que não
queria e depois aceitar. Risos. Beijo. Risos.) Já satisfeita levantou-se e foi
para o lado de fora. Varreu todas as favas que se espalhavam pelo passeio em
frente à casa. Pegou o cesto de roupa, separou as brancas das escuras, encheu
dois tanques e o resto bateu na máquina de lavar. Tirou os móveis e o tapete da
sala, começou a varrer toda a casa. Depois lavou os dois banheiros, olhando
pras pastilhas coloridas entremeadas aos azulejos claros. Pegou um balde e
passou pano molhado nos quartos e na sala. Duas vezes porque estava muito sujo.
A cozinha lavou com mangueira, evitando molhar a sala. Tirou poeira dos móveis
e dos pequenos objetos, como aquele casal típico holandês, de porcelana branca
e azul que se beijava. A caixinha de música. As cuias desenhadas de tomar
tacacá. Limpou bem os espelhos e evitou conversar com eles. (Mas viu seu rosto
e suas novas rugas e suas olheiras). Pendurou toda a roupa no varal. Voltou com
cada coisa para o seu lugar, acendeu um incenso e sentou-se um pouco. Estava exausta. A casa limpa limpava a
alma e os maus pensamentos. Descansou exatos 15 minutos e ligou o notebook.
Concluiu 2 projetos, respondeu 14
emails, olhou seu facebook, organizou pastas, ligou para 7 pessoas, ligou para
sua mãe, falou com sua filha, falou com seu filho, mandou mensagem para o filho
mais velho. Tomou banho. Fez um suco de couve com abacaxi e laranja. Seu
almoço. Foi à rua, foi à gráfica, foi ao correio, foi à padaria. Voltou para
casa. Tomou café com a filha. Pegou as roupas do varal, dobrou tudo com
paciência, assim ficava melhor na hora de passar. Viu TV, um documentário sobre
o samba, viu propaganda eleitoral, resolveram tomar aquela garrafa de vinho.
Fumou, dividindo o cigarro com a filha na janela. Falaram da vida. Falaram dos
acontecimentos. A filha dava sempre sábios conselhos. Consolava a mãe. Depois
saiu, linda. Já era uma mulher. Olhou a lua. Ventava tanto no quintal. Amanhã
vou dar um jeito nessa arvorezinha antes que ela se quebre, pensou. Daí veio o ataque. Era a terceira vez na semana. Mil pássaros
dentro do seu peito, batendo asas sem parar. Querendo sair. Choro convulsivo.
Pensamentos disformes. Medo. Vai passar, vai passar, do meio do caos ela se dizia. E se ninava como um
bebê, as mãos em volta do corpo. Durou uns dois minutos. Respirou. Não devia
ter bebido. O arsenicum receitado pela terapeuta
reiki já era forte demais. Acendeu uma guimba que ficara na janela, olhando o
telefone em cima da cama. Pegou o aparelho e acessou um perfil. Hesitava. Você
disse que não ia fazer isso. Última vez. Juro. Não. Sim. Escreveu palavras
soltas, pequena mensagem. Enviou. Isso trouxe um alívio. Mesmo que momentâneo.
Ficou um tempo imóvel olhando ainda a tela colorida. Estava mais calma, sem cor
nas faces cansadas. No banheiro escovou os dentes. Arrumou a cama, deitou e
dormiu. Esperando uma resposta.