Muita pequena abri uma mala antiga
e tive a primeira crise de asma, herança da avô materna, chamada Páscoa. Desde
então de tempos em tempos, quando os pulmões dão sinais de tristeza chiam.
Parece que tem um gato, meu preferido entre animais, dentro do peito. Com uns
três anos, via a chuva colada na janela, na casa dos avós no interior e uma
pedra de granizo quebrou o vidro e cortou meu nariz. Ganhei uma pequena
cicatriz, que hoje mal se vê. Lembro-me também de furúnculos, que me acometiam
desde pequena. A pele vermelha e intumescida, pequeno vulcão de onde saiam
secreções. Dentro, bem no centro, uma carne dura, que mamãe chamava de
carnegão. Enquanto não era expulso, a custo de muita pressão, a ferida não
fechava. Lembro-me também de dores constantes de garganta e de uma hepatite que
me deixou 40 dias de cama. Até hoje sou fraca para beber, creio que o fígado
ficou sensível demais. As provas finais do grupo escolar quase sempre fazia separado,
talvez por nervoso ficava doente com a proximidade delas, apesar de ser boa
aluna.
Cresci rápido. Com 13 anos já tinha
a altura de hoje. Fiquei moça cedo, grandona, penúltima da fila na escola.
Carregava bandeira na parada de 7 de setembro. Corpo parecido com o da minha
mãe, mas seus pés são bonitos. Os meus não. Grosseiros e grandes, pés que se afundam no chão,
enraizados demais.
Sempre quis ser mais magra do que
era. Minhas formas tendem ao redondo, ancas grandes. Nunca achei meu corpo
bonito. Sempre briguei com ele. (Fui aprender a gostar mais de mim, por fora, muito tarde,
quando alguém devolveu vida ao meu corpo cansado. Fiquei leve e linda, suave
nas formas e sem vergonha nenhuma dos pequenos defeitos.).
Sempre fiz regimes malucos e muitos
exercícios. Enjoava de tudo fácil. Até hoje sou assim. Só consigo fazer as
coisas por uma necessidade, de dentro pra fora. T’ai chi, hidroginástica, body balance,
musculação, corrida, caminhada. O que mais gostei foi do trabalho sutil da bela
Irene, cujos exercícios delicados nos fazem mudar a postura e a alma. Depois as
emoções nos desorganizam. E tudo precisa recomeçar.
Antes dos trinta vieram os
desejados filhos. Corpo que se expandia. Ficar grávida era um estado de
plenitude e força gigante, usina de gerar. Fui feliz com aquele corpo que
acolhia, quente e macio. Depois o leite sugado do peito enxugava o corpo, enquanto alimentava aquele amor sem medidas, amor-perfeito. Ficava seca,
enquanto os garotos cresciam fortes. Era bom.
À noite,
deitada na cama, sentia meu corpo imenso. Como se fosse a Bárbara do Murilo Rubião. Depois uma mulher me disse que o que
sentia era a percepção do períspirito. Corpo sutil em volta do outro, de carne.
Mistérios que desconhecemos. Só depois, aos poucos, entendi o corpo nosso, mulher
de cada dia, que abriga os menstruos, corpo aquoso, inchando e desinchando,
como os ciclos lunares. O sangue espesso todo mês, as cólicas agudas. Somos, de
corpo, feitas para parir.
Depois da filha, terceiro parto, veio
a laqueadura das trompas, corte no umbigo. Hoje penso que foi uma pequena
violência, dessas que cometemos contra ele, nosso corpo. Mas na época pareceu
ser o certo.
Aos 48 começaram a secar as regras.
Os ovários murcharam. Depois o sangue cessou. E veio outro ciclo. Parecia morte,
mas foi vida nova. E mais livre.
Meus cabelos já foram longos, há
muito tempo. Foram curtos quase sempre, como Diadorim. Hoje tentam crescer, resgato
uma mulher vaidosa nos cachos. Deixo-os brancos, mechas. Quero que me respeitem
por ser vivida.
Recentemente ganhei nova cicatriz na
face direita. Carcinoma bacelar infiltrativo. Duas vezes retirado e ainda
aponta margens exíguas, diz o laudo. Tanto sol tomado, nem me arrependo. Sempre
precisei de sol. E mar.
Nos últimos meses emagreci, mas foi
de emoção, do excesso ou da falta dela. Mesmo assim achei vantagem. As mulheres
são loucas.
Em frente ao espelho me vejo de
novo, corpo inteiro. Gosto dele, mesmo não sendo perfeito. Ele é grande,
forte e me contêm. Espelho de mim: corpo-alma.