Revejo/recorto partes de um diário de 6 anos atrás. De alguma forma
muitos dos sentimentos se refletem aqui, como um espelho de cacos, que
embaralha as memórias e sensações. A escrita cura. Divido para que outros
possam talvez se curar.
2008
12 de setembro, sexta
Mudei-me para um apartamento em
um conjunto habitacional na periferia. São muitas ruas, muitos blocos, muitas
unidades, muitas pessoas, umas cinco mil. Dois quartos quadrados, sala pequena
com ganchos para rede, cozinha e área de serviço juntas, com janela pequena,
banheiro razoável. Tem armários em todos os lugares, está todo pintado de
branco, as portas com um amarelo envelhecido, feio. Minha pequena prisão
domiciliar.
13 de setembro, sábado.
A noite foi dura. Acordei
assustada, com medo de tudo. Minha asma,
herança de vovó Páscoa voltou. Mudei-me com pouco menos do que o necessário e
apesar dos conselhos de todos, que acharam a idéia absurda: uma cama box,
comprada às pressas com a última parcela do seguro desemprego das aulas na
faculdade, uma mesa emprestada, um banquinho que vai durar pouco. Minha nora me
ajudou a trazer os trecos no seu fusca: roupas, sapatos, papéis, um
vaporizador, um edredon velho, um vaso de violeta. Fogão e geladeira chegariam mais
tarde, comprados com ajuda de mamãe. O que eu
não preciso pra viver, o que eu
preciso pra viver...
16 de setembro, terça
Remexer em fotos, papéis, vidros
de perfume que colecionava me fez mal. Queria colocar tudo dentro de um saco,
como aqueles que embrulham os cadáveres das guerras e só olhar depois que a dor
passasse.
À noite, indo para o trabalho,
fiquei olhando meu rosto na janela do ônibus: os óculos novos me lembravam o
tempo da faculdade, mas a cara tinha marcas, as rugas na testa herdadas da
vovó, o bigode chinês, os cabelos brancos que decidi não pintar, o aspecto
cansado. Em quem eu tinha me transformado?
19 de setembro, sexta
Queria fazer um adesivo:
“Estou me separando, não me pergunte como. Nem por que.”
21 de setembro, domingo.
Devia ser proibido trabalhar aos
domingos, é dia sagrado. Mas nós artistas, engajados, sociais, conscientes e
não sei mais o quê, sempre arrumamos sarna pra coçar. Fui. Saí perto do meio
dia depois de comer um pedaço de pizza requentado da noite anterior. Comer
sozinha é estranho. Sempre estive cercada de muitas pessoas: pais, tios, avós,
primos, irmãos, filhos, amigos e o povo do teatro. Sempre andei em bandos, fui
líder deles, cozinhei pra muitos, servi. E agora não tenho um gato pra
compartilhar a comida. Atravessei a cidade, encontrei outro bando, falei,
discuti, opinei, me senti em casa.
Mas no caminho chorei no ônibus.
É só a paisagem começar a se movimentar da janelinha que ele vem. Se ao menos
tivesse um lenço como meu pai tinha. Os lenços saíram de moda, o que é uma
pena, serviam pra tantas coisas: limpar um banco, assoar o nariz, enxugar as
lágrimas. Observo muitas pessoas chorando disfarçado na rua. E nenhuma tem um
lenço, pequeno que seja, pra ajudar.