domingo, 5 de outubro de 2014

Fragmentos de um diário (1)

Revejo/recorto partes de um diário de 6 anos atrás. De alguma forma muitos dos sentimentos se refletem aqui, como um espelho de cacos, que embaralha as memórias e sensações. A escrita cura. Divido para que outros possam talvez se curar.

2008
12 de setembro, sexta
Mudei-me para um apartamento em um conjunto habitacional na periferia. São muitas ruas, muitos blocos, muitas unidades, muitas pessoas, umas cinco mil. Dois quartos quadrados, sala pequena com ganchos para rede, cozinha e área de serviço juntas, com janela pequena, banheiro razoável. Tem armários em todos os lugares, está todo pintado de branco, as portas com um amarelo envelhecido, feio. Minha pequena prisão domiciliar.

13 de setembro, sábado.
A noite foi dura. Acordei assustada, com medo de tudo.  Minha asma, herança de vovó Páscoa voltou. Mudei-me com pouco menos do que o necessário e apesar dos conselhos de todos, que acharam a idéia absurda: uma cama box, comprada às pressas com a última parcela do seguro desemprego das aulas na faculdade, uma mesa emprestada, um banquinho que vai durar pouco. Minha nora me ajudou a trazer os trecos no seu fusca: roupas, sapatos, papéis, um vaporizador, um edredon velho, um vaso de violeta. Fogão e geladeira chegariam mais tarde, comprados com ajuda de mamãe. O que eu não preciso pra viver, o que eu preciso pra viver...


16 de setembro, terça
Remexer em fotos, papéis, vidros de perfume que colecionava me fez mal. Queria colocar tudo dentro de um saco, como aqueles que embrulham os cadáveres das guerras e só olhar depois que a dor passasse.
À noite, indo para o trabalho, fiquei olhando meu rosto na janela do ônibus: os óculos novos me lembravam o tempo da faculdade, mas a cara tinha marcas, as rugas na testa herdadas da vovó, o bigode chinês, os cabelos brancos que decidi não pintar, o aspecto cansado. Em quem eu tinha me transformado?

19 de setembro, sexta

Queria fazer um adesivo:
Estou me separando, não me pergunte como. Nem por que.”

21 de setembro, domingo.
Devia ser proibido trabalhar aos domingos, é dia sagrado. Mas nós artistas, engajados, sociais, conscientes e não sei mais o quê, sempre arrumamos sarna pra coçar. Fui. Saí perto do meio dia depois de comer um pedaço de pizza requentado da noite anterior. Comer sozinha é estranho. Sempre estive cercada de muitas pessoas: pais, tios, avós, primos, irmãos, filhos, amigos e o povo do teatro. Sempre andei em bandos, fui líder deles, cozinhei pra muitos, servi. E agora não tenho um gato pra compartilhar a comida. Atravessei a cidade, encontrei outro bando, falei, discuti, opinei, me senti em casa.
Mas no caminho chorei no ônibus. É só a paisagem começar a se movimentar da janelinha que ele vem. Se ao menos tivesse um lenço como meu pai tinha. Os lenços saíram de moda, o que é uma pena, serviam pra tantas coisas: limpar um banco, assoar o nariz, enxugar as lágrimas. Observo muitas pessoas chorando disfarçado na rua. E nenhuma tem um lenço, pequeno que seja, pra ajudar.