sábado, 25 de outubro de 2014

Sem fim

E quando você acha que fecha

De novo se abre a ferida
E sangra como se fosse hoje
E dói como se fosse sempre
E machuca como se fosse nova

E quando você acha que encerra
De novo se faz a página
E fere como se fosse ferro
E confunde como se fosse sonho
E ilude como se fosse mágica.

E quando você acha que acaba
De novo encontra o desejo
E queima como se fosse brasa
E arrepia como se fosse vento
E inunda como se fosse mar.

E quando você acha que sepulta  
De novo se levanta o morto
E assombra como se fosse vivo
E vaga como se fosse sombra
E paira como se fosse nuvem.

E quando você acha que acerta
De novo encontra a dúvida.
E atormenta como se fosse certa
E encara como se fosse nova
E mente como se fosse a única.

Quando você acha que chegou ao fundo
Ainda tem um palmo e meio de terra.

domingo, 19 de outubro de 2014

Noventa dias de tormenta


Foram três meses até chegar ali. Estaria feliz se não fosse náufraga. 

Lembrava-se apenas de ter sido lançada ao oceano no dia 7 de julho de 2014. Não sabia se em sonho ou delírio. De repente se viu no mar, com embarcação frágil, vela tosca e dois remos. Não sabia remar, nem velejar, muito menos entendia porque estava ali. Mas estava. Sem água doce, nem comida. Sozinha com seu medo e sua coragem. Chorava de tristeza, tinha lembranças dispersas, já não sabia de onde vinha. Vinha de um acidente? Não se lembrava de nada. E a nova lida não dava tempo de se perder em reminiscências.

Logo, ainda sem entender de todo a gravidade, com sua dureza capricorniana começou a traçar um plano. Preciso comer, preciso remar, preciso dormir, preciso chegar, preciso viver. Repetia essas palavras como um mantra. Começou a içar a vela, com muito custo, pois era pesada apesar de pequena, nunca teve muita força nos braços. Um bom vento soprava e viu isso como um sinal. Junto remava, desajeitadamente. A ação do vento e de seus braços podiam levá-la longe, pensava. Mas onde? Nem bússola ou qualquer instrumento de navegação. Apenas o sol que se punha, era seu norte. No fim do primeiro dia apagou exausta sobre o pequeno banco de madeira e dormiu, sem ver o céu de lua enorme. Acordou faminta. Procurou nos bolsos das calças, na esperança de encontrar algo. Com alegria descobriu uma bala de hortelã e um resto de biscoito mole, doce, do pavê que fizera uns dias antes. Ah! Sim! Numa festa em sua casa, com amigos, fizera um pavê, daqueles antigos, receita da avó. Agora se lembrara.

Num átimo peixes prateados saltaram pra dentro do barco, ela conseguiu pegar dois. Os japoneses comem peixe cru, lembrou-se. Com um misto de fome e nojo abriu o peixe com as mãos, arrancou as vísceras e comeu a carne, rosada e amarga. Por hoje seria só isso. Mas a sede era imensa. Bebeu água salgada. Enrolou a camisa clara em volta do rosto, para se proteger. Nuvens escuras anunciavam tempestade.  Atou-se ao barco com um cinto de pano, que tinha em volta da blusa. Mas antes procurou algum recipiente para juntar água. Achou uma lata velha, num canto, quase enferrujada.  E desceu as velas.  A chuva veio forte. Ondas varriam o barquinho, que resistia por milagre. Por sorte não durou muito e agora tinha água para beber.

Sabia que ia demorar naquele modo novo de viver. Consolou-se cantando bem alto quando a tarde caía. Assim passaram-se dias e noites e dias e mais noites. Nem sabia quantas. Quando era vencida pelo cansaço dormia exausta, sonhava. Via uma casa amarela, com árvores grandes em volta, via alguém de longe,  não identificava seu rosto. Ele arrumava coisas no quintal. Tinha uma voz mansa e dizia palavras bonitas. Logo o sol forte queimava sua pele e a luta recomeçava.

Nada de terra, nem outros barcos. Apenas aquele mar imenso, chamando para as profundezas. Talvez fosse melhor se deixar ir, como uma sereia torta e cansada, para dentro dele. Seu peito doía tanto. Era só um buraco, uma falta e um desconhecimento de tudo. Em toda sua vida nunca tinha sentido isso. Vai passar, vai passar. Mas não. Era grande e funda aquela nova sensação. O que fazia ali? Tentava se agarrar em alguma imagem, não queria ceder assim. Um vento forte encrespou o mar e uma onda partiu o mastro que caiu quase sobre ela. Sem vela, tudo ia ficar mais difícil. A cada golpe, sentia que precisava reagir. Sua garganta tinha desejos de dizer coisas. E vociferava contra tudo e todos. Quem? Depois remou com energia, sem rumo, mas avançou. Buscava terra, mas terra perto não havia.

Aprendeu a pegar peixes com uma ponta da madeira do mastro que se partira. E outras chuvas garantiram água, colhida na lata e sorvida com parcimônia. Quase se acostumara àquilo. E as noites eram esplêndidas. A natureza oprimia de tão bela. Soberana. Mais calma rezava e pedia proteção. E agradecia por estar ali, apesar de tudo. Ficava de olhos abertos deixando o vento e o acaso levar a embarcação. Dormia pouco com medo de algum peixe grande ou onda que virasse o barco. Mas sonhava. Eram sonhos confusos, com tantas imagens e rostos que mal reconhecia. Via crianças, três. Seus filhos? Via um teatro grande, luzes apagadas. Via um casal sorridente, seus pais? Um vestido branco secando ao sol. Uma senhora velhinha que a abraçava.

Depois de um longo tempo à deriva adoeceu. Teve febres e calafrios.  Dores fortes nos rins, que subia pelas costas, enjôos.  Enrolou-se no tecido grosso da vela. Desistisse? Não. Vou reagir, vou reagir. Preciso viver, preciso remar, preciso... Nem sabia mais do que precisava. Nada mais importava. E dormiu um sono profundo. Viu sua imagem como em filme. Irmã mais velha de cinco irmãos, pais poetas, infância no interior. Casou-se cedo, com um homem bom, teve três filhos, dois meninos e uma menina. Construiu casa. Fez-se artista. Era melancólica. Gostava de sol. Um dia foi morar noutra casa, sozinha. Morou em terras distantes, equatoriais. Lembrou-se de tanta luta, tanta angústia, da solidão, da esperança. Do encontro: amor-oceano. Perigoso e profundo. A casa, o mar, o banho de mangueira, a cachoeira, as promessas, o café da manhã, tapioca, cuscuz, cerveja, lua, casa, janela, cama, café, beijo, sono, corpo, música, viagem. Dúvida, medo.  Lembrou-se de cada palavra e gesto. Lembrou-se do fim. Explosão, choro, lágrima, raiva, dor, tristeza. Naufrágio. Agora entendia porque estava ali.

Acordou com um tranco forte no fundo do barco. Pensou no pior. Era um banco de areia. Desceu, trôpega. Em alguns passos, pés dentro d’água morna, estava em terra firme. Olhou mais uma vez o barco, exausto, exausta,  tão machucado quanto ela. Sentou-se na areia, chorando pegou conchas e sorriu para uma pequena estrela do mar. Sobrevivera. Longe dali avistou luzes. Vou descansar um pouco, pensou. Depois iniciaria nova etapa.