sábado, 25 de julho de 2015

Um homem bom


( Esse texto pode ser lido separadamente ou em sequência de dois outros: Noventa dias de tormenta - 19/10/2014  e  Em terra, uma história - 23/11/2014)

Aproximando-se das luzes, a primeira casa que viu era azul. Com muitas janelas e uma porta grande. Na lateral tinha uma varanda e, numa rede, alguém fumava. Caminhou com firmeza naquela direção. Abriu uma portinhola de madeira, numa cerca baixa que circundava a área, tudo muito caprichado. Parecia uma pousada. Era.
O homem se assustou com seu vulto. Levantou-se da rede, jogando na areia o resto de cigarro, uma cigarrilha de aroma adocicado, que lembrava canela. O que é isso minha senhora. Vai  entrando assim sem nem bater. Desculpa eu não queria incomodar é que. Quem é a senhora. Eu sobrevivi a um naufrágio, naveguei sem rumo durante não sei quantos dias. Meu deus. Eu preciso de.
A mulher desfaleceu antes de terminar a frase. A emoção de falar com uma pessoa depois de tanto tempo, a fome, a sede, a exaustão, foram razões mais do que suficientes, para que viesse ao chão com todo o seu pouco peso. Emagrecera mais de 10 quilos.
Acordou numa cama patente, parecida com a que herdara da sua avó, quando solteira e que depois ficou para o filho mais velho. Filho, cama, avó, casa. Novas imagens vieram. Os lençóis tinham uma estampa de flores rosadas. Por cima uma coberta tecida com fios coloridos, dessas que as pessoas vendem no litoral. Dois travesseiros apoiavam seu tronco. Era bom e macio. Um pequeno abajur laranja deixava o quarto pequeno cheio de luz delicada. Do lado da cama um pequeno caixote antigo. Uma moringa, um copo. Virou e serviu-se de água. Tomou com sofreguidão, dois copos.  No mar a água que recolhia era suja e salobra. Água de chuva, misturada com a maresia, bebida em pequenos goles. Tudo era feito com parcimônia. Não sabia se sobreviveria, mas sua dureza de cabra ensinou-lhe a viver aquela adversidade com economia.
Não tinha ideia da hora. Pelo friozinho e silêncio devia ser madrugada alta. Olhou suas mãos, seu corpo. Estava limpo. Mas não se lembrava de ter tomado banho. Lembrava-se de ter visto a casa, entrado no terreno e então tudo escureceu. Fechados os olhos, na pele sentia uma tolha molhada e morna, como se dela fora o corpo de Diadorim morto, sendo limpo pela mulher do Hermógenes. Sim, alguém limpara seu corpo magro e sujo antes de meter-lhe em lençóis alvos. Vestia uma camisola de algodão longa. Sem roupas de baixo. Estremeceu levemente ao pensar que pudesse ser o homem. Ele tinha um leve sotaque, era um estrangeiro. As cãs embranquecidas, o cabelo farto e ainda escuro. Tinha um rosto duro e uma voz que ficava no ar. Então ela lembrou-se de. Fechou os olhos com força para não ver aquela imagem. Funcionou. Eu vou dormir um pouco mais, pensou. Virou-se para o lado esquerdo e cobriu-se até a cabeça. Pegou no sono novamente. Os sonhos vieram. Ela peixe, dentro de um rio esverdeado, os cabelos longos e louros, como Ofélia. Mas não estava morta, nadava entre outros seres e flores, ramagens. Corpo deslizante na água doce, depois de tanto sal.
Acordou com sons cotidianos. A cozinha ficava perto, ouviu vozes de mulheres, barulhos de louça, talheres. Cheiro de café. Café. Café. Seu cheiro sedutor ergueu o corpo da mulher, que num átimo já estava abrindo a porta, passando por um pequeno corredor e chegando ao salão. Alguns hóspedes estavam por ali. Olharam-na com olhos curiosos. A mulher náufraga. A louca do mar. A sereia cansada, diziam baixo. Nem deu ouvidos. Continuou caminhando, descalça. O aroma inconfundível e a promessa de comida foram conduzindo aquela mulher de olhos vagos, cor de mel, os cabelos presos numa fita encarnada, para a varanda que ficava nos fundos da casa, cercada de verdes, o terreiro banhado de sol.  Sentou-se à mesa pequena, de duas cadeiras. Era o lugar mais afastado, num canto. Qualquer esforço, depois de tanto tempo em privação, parecia enorme. Ficou  respirando, cobriu o rosto com as mãos, hábito antigo. Por alguns minutos permaneceu quieta, juntando forças. Quando saiu daquela suspensão, deu com os olhos dele olhando pra ela. Era fundo aquele olhar. Mas tinha uma suavidade, uma vontade de compreender. Mesmo assim ela, bicho assustado, fez um movimento pra se levantar. Ele segurou seu braço com firmeza. Fica. Você precisa comer um pouco. Ela aceitou a quase ordem dele, a voz era macia. Voz de homem bom, pensou. Vou pedir pra prepararem um mingau para você. Eu quero café e pão com manteiga. Ele riu. Está bem. Foi buscar.
Ele preparou o pão de sal, serviu o café numa caneca de louça e trouxe. Pronto, aqui está seu desejo. Ela sorriu  e começou a comer, meio sem jeito, os farelos caindo no colo. Depois tomou um grande gole do café sem açúcar, forte. Os olhos grudados naquele pequeno banquete. Não sei ainda seu nome. Ela fez uma pausa longa. Nem eu, respondeu. E veio um silêncio.


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