Logo depois de admitir que não se
lembrava de seu nome, a mulher entrou em estado de silêncio. Não conseguiu
dizer palavra. Mesmo o café com pão e manteiga, tão saboroso e nostálgico,
arrancou dela qualquer som.
Recolhida ao quarto estava agora.
Os olhos vazios, nem chorar mais conseguia. O rio de seus olhos secara. Sabia
que precisava de um novo plano. “Preciso comer, preciso remar, preciso dormir,
preciso chegar, preciso viver...” Assim atravessou a tormenta. Agora eram
outras as necessidades. Estava sentada numa cadeira confortável que ficava
perto da janela do quarto. Só então reparou que era uma suíte. Aquela porta à
esquerda devia ser o banheiro. Caminhou até ele, abriu a porta e se deslumbrou
com uma pequena banheira. Acreditou que um banho poderia fazer bem. Há quanto
tempo não tomava um? Ela que gostava de chorar debaixo do chuveiro, deixando as
lágrimas se misturarem ao jato morno. Ela que cantava de alegria ou de
tristeza. Ela que... Despiu-se e viu seu corpo no espelho. Estava magro, os
seios mais murchos, os pelos crescidos. Temperou a água e deixou que
escorresse, enchendo a banheira. Entrou e deitou-se, molhando também os
cabelos. Fechou os olhos, a sensação de água limpa e quente derreteu sua
dureza, soltou pequenos ais. Queria ficar ali dias e dias, queria se liquefazer
e depois ir pelo ralo, queria sumir. Só isso. Chega. Para. Reage. (Sempre
aquela outra, do lado de lá, dando ordens, empurrando-a pra frente). Fez espuma
com um sabão de ervas, esfregou-se, com vigor. Tirar a pele morta. Depois
enxaguou-se usando a ducha. Puxou a toalha que estava na parede. Enrolou-se e
saiu. O espelho agora embaçado não registrou a nova mulher. Mais
leve, recendendo a sabonete. Fez um turbante com a toalha menor, adorava
turbantes. E acreditava no poder deles. Foi enxugar-se no quarto. Queria agora
era ter um vestido limpo e novo para usar. Em cima da cama ele estava. Era azul-esverdeado
com ramagens rosadas na barra. Decotado como gostava. Do lado, roupas de baixo
brancas, calcinhas e um sutiã. Tudo ali parecia tão improvável, a mulher nem
questionou. Como uma menina obediente trocou-se. A roupa ficou um pouco larga,
mas agradou-lhe as cores e a textura, crepe. Voltou ao banheiro, penteou os
cabelos que davam pelos ombros. Alegrou-se com o que viu. Quem ela era? Marina.
Ana. Bárbara. Clarice. Selma. Inês. Beatriz. Nina. Maria. Preciso entender,
preciso lembrar, preciso voltar, preciso recomeçar. Preciso lembrar, preciso
recomeçar, preciso lembrar. Preciso voltar, preciso recomeçar, preciso entender.
Sabia já do que precisava. Decidida a sair e investigar quem era, assustou-se com
uma batida na porta. Quem é. Você não me conhece. Você não me conhece. Então
empatamos. Riram-se as duas. E abriu-se a porta.
A mulher era negra, muito alta e
tinha um sorriso franco no rosto. Abraçou-a com força. O vestido caiu bem,
ficou bonita. Obrigada. Como você sabia o tamanho. Vi você no café da manhã. Ah. Trabalho aqui há muito anos. O que faz. Massagens terapêuticas, aromaterapia,
reiki. Como se chama. Páscoa. O nome ressoou. Páscoa. Era um nome pouco comum.
Mas a si era comum. Páscoa. Belo nome. Sim gosto muito dele. Venha comigo. Vou
te oferecer meus serviços. Agora. Sim.
Ia saindo descalça, mas do lado
da cama havia umas sandálias rasteiras de couro. Calçou-as, ficaram exatas. Apenas sorriu pra mulher. Meus pés são
grandes. Os meus também. E riram de novo. Há quanto tempo não se ria. Nem sabia
mais.
Atravessaram o mesmo salão de
cedo e saíram pelos jardins. A direita uma sala grande, toda de vidros e
cortinas. A mulher abriu a porta convidou-a a entrar. O lugar cheirava a
incenso e tinha luzes artificiais. Uma música suave e repetitiva ao fundo. Deite-se
aqui. A mulher obedeceu. Então Páscoa começou a aplicar-lhe a impostura das
mãos, nos chacras. Sentia o calor de cada parte, todo o seu corpo em paz. Quase
adormeceu, mantendo um estado de transe e relaxamento. Depois ouviu o pedido,
dito em voz baixa e pausada: Agora quero que me conte seus sonhos.
A chave. A porta da memória se
abriu. Ela desatou a fala, mas era calma e profunda.
“Quando ele foi embora chorei
muitas noites. Minha cama virou um barco/mar. Naufraguei. Lutei para não
sucumbir. Não sonhava nada. Dias de olhos abertos. Medo de afogar. Medo de
saber. Quando comecei a sonhar parecia real. Era como as mil e uma noites, um sonho
dentro do outro.
Nas primeiras noites sonhei que
nosso amor era uma árvore. Sozinha não podia mais regar aquele arbusto. E então
esquentei óleo de cozinha e joguei nas suas raízes para que secasse. Ela
permanecia firme e não vergava. No dia seguinte estava com uma flor para mim. E
o ritual se repetia, tantas vezes, tantas noites. Queria que aquilo acabasse. Numa
manhã, achei um rastro. Era seiva, tinha escorrido para longe.
Nas segundas noites sonhei que
nosso amor era um gato. Sozinha não podia mais alimentar aquele bicho. E então
comprei veneno de ratos e coloquei na sua comida para que morresse. Ele comia
tudo, devolvia, mas sobrevivia. No dia
seguinte estava com um ronronar para mim. E o ritual se repetia, outras vezes,
outras noites. Tudo parecia insano. Numa manhã, achei uma escama. Era peixe,
tinha nadado para longe.”
Nas terceiras noites sonhei que
nosso amor era uma criança de colo. Sozinha não podia mais criar aquele bebê. E
então cravei minhas unhas em seu pescoço, para que não vivesse. Ele me olhava sem entender,
mas não chorava. No dia seguinte estava com um sorriso para mim. E o ritual se
repetia, noites sem fim. Era triste matar o amor. Numa manhã achei uma pena. Era
pássaro, tinha voado para longe.
Três vezes matado, três vezes
morrido, três vezes acabado.”
Assim terminou a mulher. E abriu os olhos
saindo do estado de sono.
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